Assistir ao mais recente filme de Ang Lee – The Life of Pi –
é um exercício de contemplação, onde natureza e vida nos são oferecidos sob a
graça de um olhar generoso. Tomo a realização de Lee como um ato de
generosidade pois assim me aparece sua maneira de enxergar o mundo. Aqui, somos
constantemente agraciados com belíssimas
imagens que parecem sugerir devoção. Se há beleza nos mares e nas terras – com
suas misteriosas plantas e flores, e enigmáticos felinos– é porque
o verdadeiro sentido de suas existências reflete a magnanimidade do universo
que os criou. A sublime beleza que há em toda vida nada mais é mais do que um
esforço de devoção, um doce presente que oferece toda sua gratidão pela simples
razão de existir. E como se fosse, ele próprio, o criador de tal universo, Ang
Lee aceita este presente que lhe é oferecido e é suficientemente generoso para
partilha-lo conosco.
A história do jovem Pi Patel (Suraj Sharma) – como contada
por ele mesmo, já adulto (Irrfan Khan) – é uma incrível jornada de autodescobrimento.
Após sofrer o naufrágio de um navio que fazia rota da Índia ao Canada, e perder
toda sua família, o jovem é colocado à deriva a bordo de um bote, por 227 dias.
Tudo isso na companhia de um tigre-bengala. Uso o termo “colocado”, pois o
filme é esquivo à ideia de acaso. Trabalhamos aqui com a noção de destino e de
um universo regulador. Desse modo, toda a vida de Pi, anterior ao naufrágio,
havia sido uma preparação para este grande evento. E é justamente no prólogo
que somos apresentados a essa vida prévia.
Aqui conhecemos o pequeno Pi, criado no seio de uma moderna
família indiana. Filho de um pai cético e de uma mãe afável, o garoto mostra
uma diferente sensibilidade frente o mundo que o cerca. Seu olhar não é moldado
por preconceitos ou cinismos – típicos da maioria esmagadora das pessoas –. Em
sua ingênua curiosidade, Pi anseia conhecer e abraçar o mundo, incorporando
tudo o que vê como fonte de autoconhecimento, para bem ou mal. É assim que, com
certa graça, Ang Lee retrata a curiosa investida do garoto nas mais variadas
religiões, de modo que em pouco tempo nosso personagem é um
hindu/cristão/mulçumano. O que, no final das contas, o traduz como alguém sem
malicias, interessado somente em entender o mundo sob seus diferentes pontos de
vista.
É através desses mesmos olhos sem malicia que Lee quer que
apreciemos o universo que ele nos mostra. Eis o porque da capacidade do filme
em se comunicar com qualquer plateia mundo afora. Este não é um filme que
levanta grandes questionamentos, nem tampouco tenta responde-los. Muito pelo
contrario, o que Ang Lee faz aqui é sugerir, constantemente, questões que são
comuns a qualquer pessoa. Através de imagens e sons, somos levados a considerar
nosso próprio modo de levar a vida e nossa posição diante do mundo. Ao final da
película há um certo didatismo que concerne ao papel da religião em nossas
vidas. Não vou contar o que é para não estragar o final, mas ainda assim não
acho que esse seja o mérito do filme, como pode parecer num primeiro momento.
Acho que sua qualidade está presente na forma como é capaz de manter-se
afastado de julgamentos ou noções prévias acerca do universo. Pelo decorrer do
filme, enquanto Pi flutua à deriva com o tigre, somos convidados a descobrir o
mundo junto a ele, deixando de lado tudo o que conhecemos até então.
Por horas ele é ameaçado com o forte sol sobre sua cabeça ou
pela falta de comida ou, até mesmo, pela loucura. O tigre ao seu lado, no
entanto, é uma presença constante que o motiva a continuar vivo. Em toda sua
agressividade, ele é uma adversidade a ser superada. Sobreviver é um ato de
vencer o tigre e, enfim, dominar e entender a natureza.
Encarar nos olhos deste feroz tigre, ameaçador em sua
natureza e terno ao reconhecimento do outro, é um ato que leva ao
reconhecimento de nossa própria existência como uma dádiva. Assim como as
flores que oferecem sua beleza em agradecimento à vida, a sobrevivência de Pi é
também uma forma de agradecer à sua existência.
Por fim, é só pelo fato de aceitar o mundo como ele é, que Pi
consegue sobreviver. Respeitando os perigos e sendo grato pelos presentes.
Em tempos de indiscriminado cinismo e insegura ironia acredito que precisamos cada vez mais dessa feliz e corajosa capacidade de aceitar o mundo como ele
é, sem deboche ou malicia, sendo constantemente grato por assim ele ser.