Apesar de estarem em contextos distintos, bem como de terem sido produzidos em dois períodos distintos, ambas as obras que mencionei tratam essencialmente de um tema em comum: a vida dos homens sob a vigilância de um regime ditatorial.
Na obra de Scola, a historia toda se passa em um dia, girando em volta de uma relação que se forma entre, uma devota mãe de família, e seu vizinho, um radialista homossexual, tudo isso sob o contexto da Itália fascista na 2 G .M. Toda a estrutura do filme é muito bem formatada, de tal maneira que cada elemento de qualquer cena funciona a favor do roteiro e da idéia geral do filme. A arquitetura do conjunto em que moram os personagens de Marcello Mastroianni e de Sophia Loren, por si só, é um achado, tão somente por justificar o encontro dos dois, quando mais, alem disso, por fortalecer a idéia de que naquele regime não há privacidade, de modo que, ali, moram dezenas, talvez até centenas de famílias, todas dividindo informações e opiniões a respeito umas das outras. Assim sendo, Scola trabalha a idéia de que população é o próprio órgão vigilante daquele regime, tendo na figura da zeladora do conjunto sua maior representação simbólica. Uma atenção, ainda a respeito da figura da zeladora, merece ser dada, ela é aquela que cuida da vida de todos e sabe o que se passa em cada apartamento, de modo que naquela pequena comunidade dentro do grande regime fascista todos, de certa forma, devem prestar contas à ela, um bom exemplo disso é quando ela questiona a personagem de Sophia Loren por não estar indo ao grande desfile. Um dos elementos do filme que possibilita o encontro dos personagens é o pretexto de que naquele dia Mussolini receberia publicamente o chefe nazista Adolf Hitler, pretexto esse que só fortalece a trama.
É ainda esse desfile que leva todos os moradores do conjunto, inclusive a extensa família de Antonietta (Sophia Loren), a sair às ruas deixando-a sozinha em seu apartamento, com a desculpa de que ficara para arrumar a casa. Enquanto arruma a casa, no entanto, o papagaio de Antonietta foge e vai parar na janela ao lado do apartamento de Gabriele (Marcello Mastroianni). Ela, então, vai até o apartamento de Gabriele e pede por ajuda. Deprimido, e sem esperanças futuras, Gabriele vê em sua recém-conhecida vizinha uma oportunidade de desabafar.
Mais tarde, o filme justifica a desesperança de Gabriele num dialogo em que ele conta que acabara de ser demitido da radio em que trabalhava, pelo fato de ser homossexual.
Começa, então, uma relação intensa, que dura apenas um dia, mas que é uma espécie de ponto de virada na vida dos dois. Cada momento que eles passam juntos, cada conflito e entendimento entre eles é uma espécie de catarse que ao final daquele dia terá os mudado de alguma maneira. Importante mencionar, aqui, que a personagem de Sophia Loren é, em palavra, uma fiel seguidora do regime fascista, mas logo de inicio,no filme, seu olhar cansado e o fato de não ter ido ao desfile já entregam sinais de que sua devoção não é mais tão concreta, esperando apenas algum motivo e alguém com quem possa externar isso. Ela encontra em Gabriele, então, esse porto-seguro, distante de sua rotina devota à família e ao Estado e mesmo que não abandone sua vida após o encontro com Gabriele, algo nela está profundamente abalado. Ele, no entanto, tem na exaustão de sua vizinha a ínfima esperança de que aquele regime vá um dia acabar, mas enquanto isso, ele aguarda em outro lugar, fora de sua terra.
Um importantíssimo elemento é a sonorização, devido ao fato de que durante o tempo todo do filme, escutamos o canal de radio fascista ecoar pelo conjunto e descrever forçosamente todo o desfile para os dois. Ainda assim não é algo incomodo, é como se eles estivesse anestesiados, amortecidos e impassíveis àquilo, devido aos anos de repressão.
A beleza da analise critica desse tempo é, enfim, a mesma que encontramos no filme do diretor Florian Henckel von Donnersmarck. A capacidade de analisar um regime é com certeza mais fácil quando se esta fora deste regime, e ainda que Scola e Donnersmarck tenham vivido, cada um sob o regime que discorrem, respectivamente, ambos tiveram o tempo como fator de separação desses regimes, o que os permitiu fazerem obras coerentes sob um aspecto critico razoável e baseado em fatos analisados, reforçados ainda pela própria experiência vivida.
Em “A Vida dos Outros” temos, de certa forma, a mesma relação entre duas pessoas, que temos na obra de Scola, aqui, um agente do estado da Alemanha Oriental vigia um famoso escritor suspeito de conspiração. Assim como a personagem de Sophia Loren em “Um Dia Muito Especial”, o agente é, em palavra, devoto do regime, mas algo nele esta abalado, e a “convivência” que passa a ter com o escritor por meio de escutas colocadas na casa dele, vai o tornando cada vez mais simpático às idéias reacionárias, de modo que ele passa a ajudar silenciosamente seu vigiado.
Ambos os filmes são de uma beleza e importância fascinante, eles figuram, com certeza, entre as grandes obras que retratam com precisão os horrores e a impiedade de um regime ditatorial e a importância de estar sempre atento à impedir que isso venha a se repetir na historia, ainda que irremediavelmente vá continuar a se repetir.
Não há como não mencionar, ainda, que em ambas as obras, as atuações dos protagonistas, bem como dos personagens secundários são impecáveis e retratam, com precisão, a passividade e impotência dos cidadãos frente um regime massacrante. Você tem nas expressões de cada um dos atores, das duas obras, a fisionomia do ser humano como uma figura obsoleta e útil somente aos propósitos do estado.
Trata-se, enfim, de duas produções essencialmente iguais, no âmbito da temática, e que propõem uma prevenção à futuros acontecimentos similares.
Indispensáveis!
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