13 novembro, 2011

Boa Noite e Boa Sorte


Com uma dinâmica de câmera que por vezes remete aos campos de batalha de Glória Feita de Sangue ou, até mesmo, aos plantões médicos de ER, Boa Noite e Boa Sorte coloca seu espectador em meio a ação dos bastidores televisivos dos anos 50.

Aqui, com uma incrível sensibilidade para a direção, George Clooney manipula as técnicas cinematográficas em favor do que a narrativa requer. Sendo esse o caso, Clooney estrutura um filme linear, com uma decupagem clássica, sem qualquer firula que possa desviar a atenção do espectador para aquilo que realmente importa, ou seja, a ação dos personagens e seus diálogos.

Boa Noite e Boa Sorte é uma espécie de documento do passado, muito bem encenado nos dias de hoje, que diz respeito ao esforço de alguns poucos homens em garantir a liberdade individual e os direitos constitucionais do cidadãos americanos, uma vez que ameaçados pelas sandices do Senador McCarthy e sua caça as bruxas.

Munidos com nada, senão suas próprias palavras, um grupo de jornalistas da rede CBS decide confrontar os meios empregados pelo senador em sua campanha contra membros dos partidos comunistas nos EUA. O porta-voz dessa empreitada, Ed Murrow (David Strathairn), é um veterano apresentador de rádio e televisão, reconhecido por sua notória cobertura dos eventos da 2ª G.M.

Entregando uma performance muito direta e sutil, Strathairn, com seu pesado semblante, traduz em olhares todo o peso de confrontar um dos maiores políticos americanos da época.

Mas se a capacidade de entregar as mais diversas emoções apenas com um olhar é um feito para Strathairn, esse é um mérito que ele divide com todos seus companheiros de elenco. Entenda, esses jornalistas retratados são homens que compreendem muito bem os riscos de se atacar McCarthy, reconhecendo entre esses riscos, inclusive, a possibilidade de irem para a cadeia.

Sem que jamais anunciem, portanto, esses homens trazem no olhar todo o peso e a crescente ansiedade que carregam consigo (maior à medida que levam ao ar ataques diretos e pessoais ao senador).

Nesse ponto encontramos não só a sutileza de todos os atores em cena mas também a de Clooney ao direcionar seu filme para a busca de dramas sensíveis e refinados, levando o espectador a se preocupar com as dificuldades internas de cada um desses homens.

Por certo, podemos dizer que a jornada desses homens é uma crescente batalha contra um fenômeno que ameaça a vida livre na América; uma batalha que é lutada através do afiado discurso de Murrow, capaz de apresentar argumentos factuais em réplica aos vazios ataques de McCarthy.

Num conjunto de coisas, Boa Noite e Boa Sorte é uma obra extremamente bem realizada, de uma delicadeza incrível na abordagem de sua trama e de um ótimo gosto estético.

Ao que me parece, o filme tem apenas um defeito relevante, que reside na construção do roteiro e diz respeito à uma sub-trama protagonizada por Robert Downey Jr. como o jornalista Joe Wershba. Aqui, o filme nos apresenta um pequeno conflito envolvendo Wershba e sua esposa, ambos empregados da CBS, que, por sua vez, proíbe o relacionamento entre funcionários. Sem qualquer importância para a história ou para o interesse do publico, esse é o único ponto negativo do filme.

Boa Noite e Boa Sorte, o titulo do filme, é uma citação da frase de despedida de Murrow, reprisada ao fim de cada uma de suas transmissões, e essa é uma frase muito significativa, tanto mais pela entonação de Strathairn, que traz na voz a consciência dos riscos em fazer o que vem fazendo.

Ao que se despede, após trazer fatos e mais fatos sobre um lunático que constrói seu caminho rumo ao poder, Murrow, um homem que reconhece os perigos de gente como McCarthy, e vê nele o mesmo potencial de pessoas como Hitler ou Mussolini, entende que talvez não reste para a humanidade qualquer outra opção senão a própria sorte.

É de um certo modo, portanto, muito comovente ouvir essas palavras.

Boa Noite e Boa Sorte.

02 novembro, 2011

Caminhos da Mostra (II) - Desapego


O que está em jogo aqui é a sensibilidade humana.

Sabe como o mundo muda um pouco a cada dia e, da mesma forma, exige que mudemos, também? E dia após dia, durante uma série de anos, vamos nos transformando naquilo que a sociedade precisa que nos transformemos. E assim, cumprimos nossas tarefas diárias e sustentamos o organismo socioeconômico. E a uma certa altura, então, abrimos os olhos no meio da noite e nos perguntamos como é que tudo isso aconteceu e quando foi que viramos meros esboços de uma humanidade decadente.

É sobre isso tudo que Desapego tem a falar. O filme do diretor Tony Kaye aborda três semanas na vida de Henry Barthes (Adrien Brody), um professor substituto da rede pública de ensino nos Estados Unidos. A jornada de Barthes é um empenho em atingir a sensibilidade de seus alunos, de alguma maneira.

Combatendo com forças hercúleas um sistema de indiferença que por horas ameaça sua própria sanidade, Barthes tenta lidar com a total falta de perspectiva futura na vida da sociedade norte-americana. Desde a precariedade dos sistemas de saúde e ensino à sordidez das ruas, o herói do filme é afligido pela desumanização do individuo social. Há muito tempo que a consideração pelo outro deixou de ser parâmetro ético e passou a dar lugar aos interesses privados, acarretando num cenário urbano de corpos à venda e mentes alienadas.

Sob um certo aspecto é razoável entender que a jornada de Barthes é uma jornada épica onde o afeto é a grande razão de inspiração do herói.

O público, então, não tem como deixar de se compadecer pelo protagonista do filme, que não mede esforços em tentar tirar seus alunos dessa anestesia cotidiana. O que Barthes falha em perceber é que essa é uma batalha perdida e, pelo desenrolar do filme, é a tomada dessa consciência que vai abalando sua própria estrutura interna, ao ponto de quase sucumbir diante do mundo.

Em linhas gerais, o filme é um belo tratado sobre o esforço diário que os professores do sistema público empreendem, em perspectiva de um futuro digno para as gerações seguintes.

A abordagem dramática dessa realização de Kaye trabalha um certo realismo, mas sem jamais distanciar o espectador, muito pelo contrario.

Pelo desenrolar do filme, somos apresentados a depoimentos de Barthes, numa espécie de mocumentary. Nesses depoimentos, sua voz se torna cada vez mais grave e seu olhar cada vez mais melancólico. Durante o filme, alguns flashbacks de infância dão pistas sobre o passado devastador de seu protagonista e logo ficamos sabendo que nosso herói é mais uma vitima torturada pela miséria da vida. É justamente esse elemento que humaniza Barthes e compele o espectador à empatia, uma vez que o caráter magnânimo com o qual ele enfrenta a falência social parece torná-lo uma espécie de santo intocável, o que, não fosse justamente o contraponto dado por seu passado, acabaria por gerar a apatia do publico.

Afora alguns momentos onde seu discurso flerta com uma auto-ajuda barata, o personagem principal, bem como todos os outros a sua volta, é muito convincente e só faz é reforçar a noção de que nós, enquanto humanos, estamos caminhando para a falência de nossas qualidades essenciais.

Esse sentimento de implosão eminente, como se esse fosse um sistema insustentável, tem muito em comum com o sentimento gerado por filmes premiados mundo afora como o francês Entre os Muros da Escola, donde Desapego muito se inspira esteticamente, e com os documentários de Michael Moore.

Ao fim da sessão, no entanto, ao contrário de Entre os Muros ou dos filmes de Moore, não ficamos com a sensação de um aviso, nem tampouco somos impelidos a tomar uma atitude contra a corrupção de caráter gerada pelo dia a dia. Isso porque Desapego não é um alerta para a humanidade nem panfletagem política, é, sim, uma constatação triste e melancólica de nossa atual realidade.

Uma realidade, muito provavelmente, irreparável.

E a Mostra continua...

Caminhos da Mostra (I) - JESS+MOSS



O que a Mostra tem de melhor é sua capacidade de surpreender.

É nessa época do ano que entro em diversas salas de cinema, cidade afora, sem ter a menor idéia sobre o filme que estou prestes a assistir. Foi assim com JESS+MOSS.

Na realidade, minto quando digo que nada sabia sobre JESS+MOSS. Alguns dias antes havia lido uma pequena sinopse do filme. Sabia se tratar da relação entre uma menina e um menino em uma pequena cidade ao sul dos Estados Unidos.

Era o suficiente pra mim.

Pequenos fins de mundo ao sul dos Estados Unidos tem servido como cenário para filmes desde o cinema de Kazan (que, por acaso, tem uma ótima retrospectiva nessa Mostra).

Com Kazan, propriamente, nasceu a tradição de retratar os pequenos dramas de uma gente miserável em uma terra hostil.

E esse tipo de história carrega sempre uma melancolia irresistível, tendo atraído gente como Scorsese em seu “Alice Não Mora Mais Aqui”, Wim Wenders com “Paris, Texas”, Ridley Scott com “Thelma e Louise” e, obviamente, Bogdanovich com “A Ultima Sessão de Cinema”.

Bem, voltemos a JESS+MOSS. O diretor estreante, Clay Jeter, toma esse mesmo bastão em mãos e não desaponta, muito pelo contrário, encanta.

Eis um filme sobre um país (e, aqui, tomemos o sul dos EUA como um país a parte), abandonado e esquecido. Eis o retrato de uma terra sem memória ou referências, levada às tralhas pela modernidade. Eis um conto idílico sobre dois jovens retirados numa ilha imaginaria em meio à uma vasta terra.

Em meio a fragmentos de um passado onde a inocência era lei, JESS, a menina mais velha, tenta se agarrar a qualquer coisa que lhe dê a mesma segurança dos dias passados, onde tardes de verão em meio às plantações de milho eram regadas a limonada caseira. E MOSS, o menino mais novo, quer saber tudo sobre esses verões passados, sobre uma época em que as pessoas estavam amparadas numa tradição irretocável.

O grande problema para ambos é como evitar o choque de realidade causado pelo desamparo. Eles estão abandonados nessa terra. São os últimos espécimes de uma coleção já extinta. Não há mais vida nessa terra; não há mais tradição.

Os caminhos para entender JESS+MOSS, o filme, e Jess e Moss, os personagens, são vastos.

Esse é o tipo de cinema que te deixa imóvel alguns bons minutos após o término da sessão. Por isso, enquanto eu assistia ao passar dos créditos, tentava entender o que no filme havia mexido tanto comigo. E, bem, essa é a beleza da coisa, porque ele é de certa forma indecifrável.

JESS+MOSS é um filme sobre o confronto com o amadurecimento, mas é também um belo conto sobre um país sem memórias e, portanto, sem afeto. JESS+MOSS é um filme sobre tantas coisas ao mesmo tempo que talvez, no fim das contas, possa ser apenas um filme sobre dois jovens e nada mais.

Ainda que num primeiro momento não se tornem claras todas as intenções do filme é fácil entender o que nele me agrada tanto. Enquanto seres humanos, somos todos sensíveis ao mundo e é, portanto, essa sensibilidade que nos torna capaz de apreciar uma beleza legítima, tal como a que nasce dessa primeira obra-prima do diretor Clay Jeter.

E a Mostra continua...