11 maio, 2010

A Estrada

Quando o gênero humano se descolore.

Em Onde Os Fracos Não Tem Vez, o xerife Ed Tom Bell, personagem de Tommy Lee Jones, ao fim do filme, conta à sua mulher sobre um sonho que teve na noite anterior.

Seu pai, no sonho, caminhava por um vazio imenso, um lugar desértico. Coberto por uma manta, ele carregava uma tocha, ia acender uma fogueira em algum lugar no meio daquela vastidão fria e escura.

A chama que o pai do xerife Ed Tom carrega é, na realidade, uma fagulha.

Uma fagulha de esperança em meio aos fortes ventos de um deserto violento e desolador.

Cormac McCarthy é um romancista americano. Prefiro proclamá-lo ensaísta.

Autor de No Country For Old Men, seu livro A Estrada é a adaptação cinematográfica da vez.

Não li nenhum de seus livros, minha base são os filmes inspirados neles. Pelo que se relacionam, declaro McCarthy ensaísta de uma longa e única obra.

No Country e A Estrada são, essencialmente, o mesmo filme.

O sonho do xerife Ed Tom pode ser lido como toda a narrativa de A Estrada.

Um ensaio pós-apocalíptico. A Estrada é um retrato simbólico de caráter concreto e fenomenal.

O simbolismo está presente nesse cenário pós-apocalíptico e na relação entre o pai e o filho – protagonistas –.

O que há de concreto e fenomenal advém, em contrapartida, do próprio plano simbólico. Ambos, pai e filho, representam o homem com a tocha do sonho em No Country For Old Men.

Por mais surreal que pareça, eles são personagens concretos, personagens reais. Personagens que matem firme sua humanidade e com isso carregam a flama magnânima do grandioso caráter humano.

O pai, pesar de seus defeitos, padece. Apesar deles, mantém viva em sua memória uma única certeza – mostrar à seu filho o caminho correto: o da humanidade sobre tudo –. Esse caminho exige esforço hercúleo, uma vez que inserido num universo onde a sobrevivência é pretendida acima de qualquer valor.

Podemos dizer que A Estrada é o ensaio sobre a violência de No Country levado às ultimas conseqüências. Senão isso, uma visão simbólica sobre a narrativa deste.

Aqueles que pretendem, com A Estrada, ver um filme sobre o fim do mundo alucinante e megalomaníaco, ao melhor estilo Roland Emmerich, irão sair decepcionados. A Estrada, do diretor John Hilcoat, é um filme sutil, concebido com outros propósitos, que não um filme de catástrofes grandiosas.

A grandiosidade está em lidar com a catástrofe humana, a catástrofe do progresso.

A perspectiva é de ilustrar, sem rodeios, a desumanidade implícita no progresso social – leia-se progresso do capital – acima de tudo. Mais que isso, é retratar a falibilidade à que todos nossos valores e certezas estão sujeitos, sem que nem nos demos conta disso.

Tomamos por certo tantas coisas. Somos crédulos de nossa generosidade, benevolência e altruísmo acima de tudo, bem como de nossa moral ética judaico-cristã. Não nos damos conta, no entanto que há algo dentro de nós muito mais poderoso e devastador, a natureza de nosso ser. Nossa raiz humana capaz de erradicar qualquer valor.

Mirar uma arma na cabeça de seu filho, na diegése do filme, é enveredar uma luta contra essa natureza humana devastadora e enaltecer uma possível sobreposição da moral afetiva e racional à brutalidade inerente do caos e descaso social.

Propriamente, esse caos e descaso não se concebem de um pós 2012 ou coisa do tipo. São, de fato, engendrados de um processo de caráter inexorável e distópico que teve início no primeiro momento em que o primeiro homem se percebe capaz de manipular o mundo a sua volta. O primeiro cérebro a compreender seu ambiente e afins como ferramenta, deu o tiro de largada para esse processo.

Por fim, A Estrada é um romance, um filme ou um ensaio, como queira, de coragem e virtude.

Cormac McCarthy se arrisca em contemplar, sem floreios, a triste posição em que nos encontramos nós, seres humanos, apenas por sê-lo. Não perdendo de vista o olhar nostálgico sobre essa situação e depositando suas esperanças sempre em alguém por aí, algum pai ou filho qualquer.

Algum pai ou filho qualquer, bravos o suficiente para carregar uma chama exaustiva.

A mensagem? Esperar que a chama vingue.

09 maio, 2010

Whatever Works


É bom ver Woody Allen. É bom vê-lo em sua essência e espírito.

Fui ao cinema ontem. Não estava muito entusiasmado com o filme. Whatever Works.

Sabia se tratar de um Woody Allen original – de sua boa época –. Mas, ainda assim, seus últimos filmes me tiraram o entusiasmo em continuar acompanhando suas produções.

A verdade, no entanto, é que quando entrei no filme, um pouquinho atrasado, me deparei logo com os créditos iniciais pela metade.

Da forma clássica como são os credito de seus filmes, embalado por uma música deliciosa.

O entusiasmo me atingiu novamente, enfim, logo ao primeiro contanto com aquele humor e clima clássico de seus filmes.

Na cena inicial vemos Woody Allen representado por Larry David.

O clássico hipocondríaco, neurótico, e misantropo gênio.

Um pouco grosseiro, na carcaça de David, mas ainda assim, essencialmente Allen. Tão fácil de curtir e se divertir, apenas um pouco mais rude.

É bom ver Woody Allen dar uma respirada e tirar um tempo dessa “nova fase”.

É bom vê-lo de volta a si mesmo.

Allen, aqui se faz, novamente, presente nas telas.

Em Wathever Works vemos suas impressões, sua personalidade e seu rosto – ainda que, como já dito, seja Larry David quem vista a carapuça –.

Talvez, dessa “respirada” entre um filme e outro da nova fase, lhe falte fôlego suficiente, aos 74 anos, para nos agraciar também com sua atuação, o que sem dúvida desfavorece o filme.

Ainda assim, David dá conta do recado e faz a função de suportar o filme muito bem.

Seguindo o arquétipo clássico dos personagens representados e escritos por Allen, David sustenta o filme usando os personagens ao seu redor como escada para suas neuroses e críticas.

O misantropo manco – dada uma frustrada tentativa de suicídio – encontra numa jovem moça do sul, que lhe pede abrigo, um ouvido companheiro que agüenta todas as reclamações do neurótico. A ingênua e boa moça vai logo se admirando pelo velho e procurando se parecer com ele.

Ao desenvolver da narrativa, uma série de personagens vai aparecendo na trama e sempre batendo à porta de Boris (Larry David). Cada um desses personagens, assim como o próprio Boris e a jovem sulista, Melody, são caricatos.

Figuras simbólicas. Caricaturas extremas, de regras de conduta e morais sociais das mais diversas crenças – sejam religiosas ou éticas –.

Woody Allen, faz aqui, de uma certa maneira o que faz em Desconstruindo Harry.

Uma auto-analise, apenas mais tolerante e sensível em relação a si e ao mundo.

Faço essa leitura, pois cada uma das personagens está presa a normas éticas que seguem cegamente, e por isso não se deixam viver.

Ao passo que vão se libertando dessas abstratas e convencionais normas, cada personagem vai encontrando uma razão mais digna e verdadeira de viver.

Woody Allen dá um tempo da função de embaixador da cultura européia e contempla sua vida. Exatamente como faz em Desconstruindo Harry.

Dessa vez, no entanto, mais maduro, ele se compreende feliz e bem ajustado.

Se em Desconstruindo Harry, Allen é juiz-penitente, autocrítico e moralmente guiado, em Whatever Works, Allen compreende que o auto-julgamento leva à desgraça pessoal, sustentada por invenções e críticas falseáveis propostas pela sociedade.

Se há alguns anos atrás ele percebia sua vida pessoal e suas relações na ordem da depravação, hoje ele percebe a depravação como uma convenção boba e sem sentido que atrasa sua felicidade e saúde mental.

É isso que Boris, ou Larry David, ou o desconstruído Harry, ou um arrependido e finalmente redimido, Woody Allen, representa.

Whatever Works, diz o titulo, é uma proposta de vida.

Pode parecer auto-ajuda. Mas não vale menos por isso.

É Woody Allen dizendo – Ei, o mundo é aquilo que você concebe, se quiser ser feliz, seja, se quiser transar com uma cabra, bem... whatever works –.

O final do longa é um clichê. Ponho assim, pois o próprio personagem Boris previne para isso, lá pelo meio do filme: “Eu sei que disse que não gosto de clichês, mas as vezes eles funcionam”.

Whatever Works. O clichê funciona.

Ao fim, cada personagem se encontra em estado de plenitude, livre de suas crenças, alguns sendo excêntricos e outros normais, ou não, afinal, tudo é uma questão de como se concebe esse mundo de regras surreais.

Se você abandonar suas crenças bobas e éticas, concebidas de um acaso quase insuportavelmente aleatório, você vai ver que tudo pode dar certo.

E para Woody Allen, tudo dá certo.