03 fevereiro, 2013

The Life of Pi



Assistir ao mais recente filme de Ang Lee – The Life of Pi – é um exercício de contemplação, onde natureza e vida nos são oferecidos sob a graça de um olhar generoso. Tomo a realização de Lee como um ato de generosidade pois assim me aparece sua maneira de enxergar o mundo. Aqui, somos constantemente agraciados com  belíssimas imagens que parecem sugerir devoção. Se há beleza nos mares e nas terras – com suas misteriosas plantas e flores, e enigmáticos felinos– é porque o verdadeiro sentido de suas existências reflete a magnanimidade do universo que os criou. A sublime beleza que há em toda vida nada mais é mais do que um esforço de devoção, um doce presente que oferece toda sua gratidão pela simples razão de existir. E como se fosse, ele próprio, o criador de tal universo, Ang Lee aceita este presente que lhe é oferecido e é suficientemente generoso para partilha-lo conosco.

A história do jovem Pi Patel (Suraj Sharma) – como contada por ele mesmo, já adulto (Irrfan Khan) – é uma incrível jornada de autodescobrimento. Após sofrer o naufrágio de um navio que fazia rota da Índia ao Canada, e perder toda sua família, o jovem é colocado à deriva a bordo de um bote, por 227 dias. Tudo isso na companhia de um tigre-bengala. Uso o termo “colocado”, pois o filme é esquivo à ideia de acaso. Trabalhamos aqui com a noção de destino e de um universo regulador. Desse modo, toda a vida de Pi, anterior ao naufrágio, havia sido uma preparação para este grande evento. E é justamente no prólogo que somos apresentados a essa vida prévia.

Aqui conhecemos o pequeno Pi, criado no seio de uma moderna família indiana. Filho de um pai cético e de uma mãe afável, o garoto mostra uma diferente sensibilidade frente o mundo que o cerca. Seu olhar não é moldado por preconceitos ou cinismos – típicos da maioria esmagadora das pessoas –. Em sua ingênua curiosidade, Pi anseia conhecer e abraçar o mundo, incorporando tudo o que vê como fonte de autoconhecimento, para bem ou mal. É assim que, com certa graça, Ang Lee retrata a curiosa investida do garoto nas mais variadas religiões, de modo que em pouco tempo nosso personagem é um hindu/cristão/mulçumano. O que, no final das contas, o traduz como alguém sem malicias, interessado somente em entender o mundo sob seus diferentes pontos de vista.

É através desses mesmos olhos sem malicia que Lee quer que apreciemos o universo que ele nos mostra. Eis o porque da capacidade do filme em se comunicar com qualquer plateia mundo afora. Este não é um filme que levanta grandes questionamentos, nem tampouco tenta responde-los. Muito pelo contrario, o que Ang Lee faz aqui é sugerir, constantemente, questões que são comuns a qualquer pessoa. Através de imagens e sons, somos levados a considerar nosso próprio modo de levar a vida e nossa posição diante do mundo. Ao final da película há um certo didatismo que concerne ao papel da religião em nossas vidas. Não vou contar o que é para não estragar o final, mas ainda assim não acho que esse seja o mérito do filme, como pode parecer num primeiro momento. Acho que sua qualidade está presente na forma como é capaz de manter-se afastado de julgamentos ou noções prévias acerca do universo. Pelo decorrer do filme, enquanto Pi flutua à deriva com o tigre, somos convidados a descobrir o mundo junto a ele, deixando de lado tudo o que conhecemos até então.

Por horas ele é ameaçado com o forte sol sobre sua cabeça ou pela falta de comida ou, até mesmo, pela loucura. O tigre ao seu lado, no entanto, é uma presença constante que o motiva a continuar vivo. Em toda sua agressividade, ele é uma adversidade a ser superada. Sobreviver é um ato de vencer o tigre e, enfim, dominar e entender a natureza.

Encarar nos olhos deste feroz tigre, ameaçador em sua natureza e terno ao reconhecimento do outro, é um ato que leva ao reconhecimento de nossa própria existência como uma dádiva. Assim como as flores que oferecem sua beleza em agradecimento à vida, a sobrevivência de Pi é também uma forma de agradecer à sua existência.

Por fim, é só pelo fato de aceitar o mundo como ele é, que Pi consegue sobreviver. Respeitando os perigos e sendo grato pelos presentes.

Em tempos de indiscriminado cinismo e insegura ironia acredito que precisamos cada vez mais dessa feliz e corajosa capacidade de aceitar o mundo como ele é, sem deboche ou malicia, sendo constantemente grato por assim ele ser. 

30 janeiro, 2013

O Impossível


Em 1976, o mestre Sidney Lumet, com seu filme Rede de Intrigas, trouxe à tona um importante debate sobre o papel sensacionalista e exploratório da mídia. Nele, Peter Finch interpreta Howard Beale, ancora de um semifalido canal de TV, que sofre um colapso emocional em frente as câmeras. A resposta imediata a esse evento, por parte dos homens que comandam o canal, é a de tirar Beale do ar. O primeiro a mostrar-se preocupado com a integridade emocional de Beale é seu amigo de longa data, e chefe do departamento jornalístico do canal, Max Schumacher (William Holden). Schumacher vem de um tempo onde integridade moral desempenha um papel mais importante do que altos índices de audiência. Infelizmente, esse não é o caso para a novata Diana Christensen (Faye Dunaway), que não vê problemas em sujar as mãos para conseguir tomar o lugar de Schumacher como chefe do departamento jornalístico do canal. Em face do pico de audiência que o colapso de Beale atingira, ela segue a direção oposta da velha guarda do canal e passa a explorar o drama pessoal de um homem completamente atormentado, colocando-o no ar diariamente, para soltar gritos de desespero e conquistar mais e mais espectadores. Se para os antigos tal drama pessoal concerne somente àquele homem e deve ser mantido em sigilo afim de preservá-lo, para toda uma nova geração de produtores e espectadores esse drama deve ser transformado em espetáculo e vendido às oito da noite no canal local.

Em 2012, Juan Antonio Bayona nos oferece um filme que nada tem a dizer e só faz afirmar o que Lumet anunciara mais de trinta anos atrás. Com um elenco todo formado por loirinhos britânicos, “O Impossível” narra a real história de sobrevivência de uma família espanhola no tsunami que atingiu a Ásia em 2004. A história toda se resume em uma linha: em meio a tragédia, o pai e seus dois filhos mais novos se perdem da mãe e do filho mais velho o que põe os dois lados a procurar um pelo outro. No final do filme eles se encontram e vivem felizes para sempre.

Em se tratando de uma história tão simples, que podia ser contada em uma rápida conversa à mesa do café ou noticiada numa chamada de 2 minutos no jornal da manhã, o que então é narrado ao decorrer de 114 minutos?

Simples, a jornada de busca de uns pelos outros, com direito a muitos e muitos close-ups nos lacrimejantes olhos azuis de Ewan McGregor, Naomi Watts – a sofrida – e seus lindos filhinhos loiros. Os mais tolos dirão que essa é a história de superação de uma família que mostra a força do espírito humano diante de uma tragédia. Seguirão dizendo que pouco tem a ver com o tsunami ocorrido na Ásia e que trata, em realidade, do amor como força inabalável. Sim, é verdade. E é tudo isso que o diretor espera vender para o povo. E ele consegue.

A mim, no entanto, parece vergonhosa a tentativa de ocidentalizar uma tragédia que pertence ao povo asiático, esvaziando-a de sentido e desconsiderando todo o efeito que teve sobre aquela população, focando a ação do desastre sobre uma única família que em nada representa a grande maioria afetada pelo tsunami.

Ao que me parece, Hollywood está sofrendo uma escassez de tragédias. Quero dizer, o 11 de Setembro, o Apartheid, os massacres em escolas e afins, já se esgotaram. Não há mais meio de se arrancar lágrimas com esses eventos – não vou nem comentar o Holocausto –. Pelo jeito, chegou-se, realmente, ao ponto de importarem tragédias.

Se há algum mérito em toda a produção, ele é entregue no trailer. Estou falando da sequência em que o tsunami ocorre. É verdadeiramente impressionante a construção visual e sonora da coisa toda. Do mais, justamente o design de som, em especial no começo do filme, elaborado por Oriol Tarragó, é extremamente eficaz em associar barulhos como os da turbina de um avião ao desastre porvir, como que numa antecipação angustiante do evento.

Fora a singularidade desses feitos técnicos, todo o resto é uma peça de sensacionalismo barato. Um jornalismo ficcional pobre e desrespeitoso com o único propósito de lucrar com lágrimas da mais desprezível comoção.

A propósito, no final de Rede de Intrigas Howard Beale é morto por um tiro diante de uma platéia que o assiste impassível. Não posso deixar de notar uma estranha semelhança entre esta platéia e os espectadores da recente sessão de “O Impossível” a que fui assistir. 


29 janeiro, 2013

O Mestre




Como cineasta, aprendi, assistindo à bons filmes, que poucas coisas são capazes de expressar a condição humana tão bem quanto a performance de um ator. “O Mestre” é um filme que bem exemplifica isso. Aqui, intepretação e temática se desenvolvem lado a lado e se complementam.

A história de Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um andarilho, veterano da 2ª Guerra Mundial, que, por força do destino, acaba conhecendo Lancaster Dodd (Phillip Seymour Hoffman), o fundador de uma nova religião, trata, simplesmente, da relação entre esses dois homens. O que dá forças ao filme é a abordagem dessa relação, que prepara terreno para os mais diversos níveis de análise. Sob um certo prisma, essa é uma relação paternal conflituosa – como as são por natureza – onde um terno e preocupado Dodd adota Quell como seu filho. Um filho desviado do caminho do bem e desvirtuado por ocasião de um mundo hostil, a quem Dodd aspira colocar no caminho da redenção. Mas se por um momento a relação entre eles se apresenta dessa maneira, o que temos logo em seguida é um líder religioso impassível e meticuloso em seus métodos, para quem Freddie Quell não passa de um cão domesticável. Basta notar como o personagem de Phoenix é sempre mantido ao lado de fora das casas, recebendo tarefas de condicionamento e repreensões toda vez que está dentro delas.  Good boy – Dodd costuma dizer à Quell. Por outro lado, o filme não teria metade de sua força se apenas o mestre religioso agisse sobre o vagabundo. Não, à medida em que o filme avança aquele sóbrio Lancaster Dodd do começo vai aparecendo mais destemperado e por horas perde a razão. Ele se deixa abalar por Quell, cujas atitudes impensadas e continua teimosia em se deixar domesticar o desestabilizam emocionalmente – o que, num ultimo momento, se traduz em afeto –.

Enfim, a relação mestre e aprendiz é concebida com tal cuidado e inteligência por seu roteirista e diretor, Paul Thomas Anderson, que a cada momento ela parece sugerir algo diferente, onde ambos os homens se deixam afetar um pelo outro. Haveria uma infinidade de leituras a se fazer sobre essa relação, e é isso o que faz um bom filme – profundidade –. Devo abrir um parênteses para constatar a minha verdadeira alegria em assistir a uma obra como essa depois da mais recente bobagem tarantinesca.

Continuando, afim de garantir a qualidade do texto eu devo tentar me ater a uma única abordagem dessa relação. Vale dizer que cada modo de interpretação da relação parece sugerir algo sobre a própria existência humana, donde os personagens traduzem algo sobre o mundo que nos cerca e a posição em que nos encontramos nesse mundo. Eis a importância das soberbas atuações de Phoenix e Seymour Hoffman para validar a temática. E é justamente por esse motivo que tenho maior apreço pela análise da relação de Dodd e Quell como mestre e cão domesticável, respectivamente.

Quell é um velho cachorro louco, desamparado e sem rumo, cujos constantes impulsos sexuais refletem sua natureza primitiva. Dodd é seu mestre. Em um plano emblemático do filme, o quadro é dividido em duas metades. De um lado, Quell caminhando com dificuldade em um navio que navega sobre as águas de um dos canais de Nova York. Do outro, estas próprias aguas em movimento, como espelho da essência violenta e devastadora dos homens. O plano é ainda mais representativo quando consideramos que é nesse mesmo barco que Quell e Dodd se conhecem. Ou seja: o barco como símbolo do domínio racional do homem sobre as aguas. Traduzindo, o caminhar desequilibrado de Quell a bordo desse barco é uma primeira imagem desse homem que será induzido a domesticar-se. É curioso que Dodd seja o mestre de uma ceita religiosa, pois da maneira que vejo ele poderia ser uma figura política ou um cerebral cientista. O que quero dizer é que religião, politica e ciência, juntamente com a instituição familiar - bem representada na qualidade paternal de Dodd – tem sido os pilares das sociedades por algum tempo, já. Em essência, todos eles exercem um controle sobre nossos impulsos primitivos. Cada um a sua maneira.

Entendo a opção de Thomas Anderson, pela religião como cenário do filme, como algo que fortalece o argumento de que todo o movimento do personagem Dodd pelo decorrer da trama é um movimento vazio de qualquer sentido real e concreto. Suas investidas em Quell jamais vingarão porque não há verdade em nada do que ele diz e ele próprio está ciente disso. Quando Anderson contextualiza sua história no período do pós-guerra, onde a fé na ciência como motor do progresso humano acaba de vir abaixo, e onde a religião há muito tempo perdera sua característica de moderadora social, o que temos é um cenário de desesperança, onde as pessoas procuram se agarrar umas nas outras em busca de sentido. Nesse cenário, estão todos dispostos a comprar mentiras banais e vende-las como verdades absolutas. As pessoas precisam disso pra poder dar continuidade a suas vidas.

Por algum tempo eu associei a figura de Quell, o velho cachorro louco, com aquela do desesperado homem moderno em busca de algum sentido na vida. Um homem a procura de alguém que quisesse domesticá-lo, acreditando nas bobagens do primeiro mestre que lhe aparecesse. Mas havia algo de incomodo na interpretação de Phoenix. Seu sorriso debochado de canto de boca e suas ações contraditórias à tudo aquilo que Dodd lhe ensinava pareciam caçoar e fazer pouco das palavras pregadas pelo mestre, e fugiam à minha leitura dele como alguém desesperado. Foi quando me dei conta de que a figura desamparada e falida não é o cachorro mas, sim, seu mestre. Se essa é uma história sobre a humanidade de uma maneira geral, então o título deve fazer referência àquele que representa essa humanidade – O Mestre –. Finalmente entendi que aquele cachorro louco é a natureza presente no próprio mestre e que ele tenta tão desesperadamente controlar. Quell é a essência da existência de Dodd. E Dodd somos nós, que tentamos controlar nossos impulsos, por todos os meios necessários.

Nós somos o líder religioso que inventa as mais baratas mentiras e as vendemos na esperança de que se tornem verdades. Na esperança de enganarmos a nós próprios, nos fazendo acreditar que ao fim do dia somos algo mais do que constante tensão sem alívio. Pois se assim for só nos resta o desespero.

Em dada cena, ao final do filme, Dodd convida Quell a visita-lo em Londres. Chegando lá, Quell é recebido em uma grande e ostensiva sala, sugerindo que a religião fundada por Dodd vingara e as pessoas compraram suas mentiras. Eles se sentam à uma mesa, um de cada lado. Atrás de Dodd há uma grande janela que da para um céu branco. Os dois começam a conversar e os planos em que Dodd aparece remetem às pinturas renascentistas. Ele é uma figura divina, posta ao centro da tela, preenchendo-a com toda sua magnanimidade. Atrás dele, porém, a luz que entra da janela não incide sobre sua cabeça como aconteceria numa pintura renascentista. Não, ao contrario disso, a luz é opaca e difusa. Eis a perda da áurea. Em sua ostensiva sala, construída sob os auspícios de mentiras que ele quer tanto poder acreditar, Dodd não passa de uma divindade falida. A falta de uma luz incidindo sobre sua cabeça, torna evidente a farsa que ele construiu pra si próprio. Mas são suas palavras finais para Quell que causam o maior impacto – Se você conseguir viver sem um mestre, me conte como o fez –. E com isso, Quell se levanta e vai embora sem nos deixar qualquer esperança de jamais tornar a domestica-lo. 

Há verdadeira beleza na maneira como o filme todo é construído e grande parte dessa beleza nasce das interpretações de Joaquin Phoenix e Phillip Seymour Hoffman. Cada vez mais tenho por certo de que a essência do bom cinema gira em torno dos personagens em detrimento às situações, que no fim das contas são mero pano de fundo para aquilo que realmente importa. 

22 janeiro, 2013

Hehewuti Unchained




Jim Emerson, colunista do Chicago Sun-Time, em sua recente análise de Django Unchained, escreveu que os filmes do Tarantino são a mistura pop de tudo aquilo que ele assiste e aprecia. Disso, Emerson conclui que para efeitos de apreciação das obras de Tarantino o espectador deve partilhar do mesmo “gosto” cinematográfico do diretor.

Concordo com o que Emerson escreve. Acho insuficiente, porém, dizer que todos os entusiasmados pelo cinema de Peckinpah ou Sergio Leone serão admiradores incondicionais do cinema de Tarantino. Pelo que percebo, só os espectadores mais preguiçosos (grande maioria) é que terão QT como o grande mestre da violência cinematográfica do século 21. Entenda, entre fazer sangue jorrar, à uma violência substancial, há um longo caminho a ser percorrido. Caminho esse do qual Tarantino vem se distanciando mais e mais a cada filme.

Quando você pega um filme como Cães de Aluguel, ou até mesmo Pulp Fiction em sua estrutura episódica, você percebe imediatamente que a emergência criativa do diretor se deve ao entusiasmo pela violência, em seu potencial estético. Porém, ainda que seja o fio condutor dessas obras, a violência jamais compromete o potencial da história ou dos personagens. Isso porque, nesses filmes, ela é posta como cenário e não como objeto central da trama. Quando esse processo se inverte, porém, e você começa a ter personagens que são verdadeiras marionetes de um espetáculo visual à serviço da violência como único elemento catártico (caso dos filmes mais recentes de Tarantino), o que se tem é um amontoado de colagens e referências que desvirtuam a essência do bom cinema – a trama –.

Eis o caso de Django Unchained. Dizem por aí que que este é um western sobre a escravidão no sul dos Estados Unidos, temática que vem causando certo rebuliço e discussão lá. Mas não é verdade que seja. O pano de fundo aqui poderia ser o extermínio dos indíos norte-americanos no século XIX, tendo o nosso protagonista o nome de Hehewuti, ou até mesmo uma guerra entre marcianos e humanos colonizados. De uma forma ou de outra, Hehewuti Unchained seria, essencialmente, o mesmo filme que está em cartaz nos cinemas agora. Isso porque não há profundidade naquilo que está sendo tratado. Tudo o que vemos em tela não passa de esboço, um espaço em branco para os delírios estéticos de um diretor deslumbrado. E por um lado isso não me incomoda tanto, os filmes de Tarantino são uma diversão passageira, um nada a dizer que tem certa graça nos diálogos aguçados e nas reviravoltas de situações extremas. Acontece que eu já vi Bastardos Inglórios. Daí minha preguiça em assistir a mesma coisa de volta. Quero dizer, da primeira vez eu pensei “olha que legal, pessoalzinho se vingando dos cretinos históricos lá na Alemanha nazista” e agora é “olha que legal, pessoalzinho se vingando dos cretinos históricos na América escravagista”.

Ainda assim, em Bastardos Inglórios temos a tensão magistral do prólogo, com a família de Shoshana (Mélaine Laurent) escondida sob o assoalho de uma casa enquanto o Cel. Landa (Christoph Waltz) interroga o dono da casa. Mesma tensão que se repete na cena onde oficiais aliados jogam cartas em um bar com soldados alemães. E, mesmo em Bastardos, há uma empatia pela personagem que perdeu a família toda nas mãos do cruel Landa. Você torce pela vingança dela e não é nada mal que essa vingança venha banhada pelo sangue de Hitler. Ainda que seja um filme raso, é bem construído.

De toda maneira, se ainda havia momentos e personagens louváveis em Bastardos Inglórios, tudo isso sumiu de vez em Django Unchained.

Quero dizer, quando reparamos que não há a menor tentativa de criar um passado com apelo dramático para Django (Jamie Foxx), tentando gerar empatia por meros flashbacks com sua amada esposa que lhe fora tirada pelos donos de terra, torna-se impossível torcer por sua vingança. Como não nos importamos nem um pouco com esse personagem, sua jornada se torna monótona e despropositada, não há tensão, não há expectativa e não há clímax. O que dizer do encontro entre Django e Broomhilda (Kerry Washington)?

Por isso tudo, fica ainda mais patética a cena em que o companheiro alemão de Django, Dr. Schultz (Christoph Waltz), lhe conta a lenda de Broomhilda e seu amado Siegfried, que a salva do alto de uma montanha guardada por um dragão. Em uma cena, Tarantino tenta fazer o que não é capaz de fazer por todo o decorrer do filme, estabelecer seu personagem como um herói crível, dono de uma jornada nobre. Ainda que ele próprio não acredite nisso. E se não acredita é porque está mais preocupado em pintar tudo de sangue.

E como eu disse antes, não há nada de mal nisso. Não me incomoda tanto que a cada filme que faça suas intenções fiquem mais pobres e superficiais. O que me incomoda é que público e crítica insistam em levá-lo a sério, quando ele próprio não se leva.