13 novembro, 2011

Boa Noite e Boa Sorte


Com uma dinâmica de câmera que por vezes remete aos campos de batalha de Glória Feita de Sangue ou, até mesmo, aos plantões médicos de ER, Boa Noite e Boa Sorte coloca seu espectador em meio a ação dos bastidores televisivos dos anos 50.

Aqui, com uma incrível sensibilidade para a direção, George Clooney manipula as técnicas cinematográficas em favor do que a narrativa requer. Sendo esse o caso, Clooney estrutura um filme linear, com uma decupagem clássica, sem qualquer firula que possa desviar a atenção do espectador para aquilo que realmente importa, ou seja, a ação dos personagens e seus diálogos.

Boa Noite e Boa Sorte é uma espécie de documento do passado, muito bem encenado nos dias de hoje, que diz respeito ao esforço de alguns poucos homens em garantir a liberdade individual e os direitos constitucionais do cidadãos americanos, uma vez que ameaçados pelas sandices do Senador McCarthy e sua caça as bruxas.

Munidos com nada, senão suas próprias palavras, um grupo de jornalistas da rede CBS decide confrontar os meios empregados pelo senador em sua campanha contra membros dos partidos comunistas nos EUA. O porta-voz dessa empreitada, Ed Murrow (David Strathairn), é um veterano apresentador de rádio e televisão, reconhecido por sua notória cobertura dos eventos da 2ª G.M.

Entregando uma performance muito direta e sutil, Strathairn, com seu pesado semblante, traduz em olhares todo o peso de confrontar um dos maiores políticos americanos da época.

Mas se a capacidade de entregar as mais diversas emoções apenas com um olhar é um feito para Strathairn, esse é um mérito que ele divide com todos seus companheiros de elenco. Entenda, esses jornalistas retratados são homens que compreendem muito bem os riscos de se atacar McCarthy, reconhecendo entre esses riscos, inclusive, a possibilidade de irem para a cadeia.

Sem que jamais anunciem, portanto, esses homens trazem no olhar todo o peso e a crescente ansiedade que carregam consigo (maior à medida que levam ao ar ataques diretos e pessoais ao senador).

Nesse ponto encontramos não só a sutileza de todos os atores em cena mas também a de Clooney ao direcionar seu filme para a busca de dramas sensíveis e refinados, levando o espectador a se preocupar com as dificuldades internas de cada um desses homens.

Por certo, podemos dizer que a jornada desses homens é uma crescente batalha contra um fenômeno que ameaça a vida livre na América; uma batalha que é lutada através do afiado discurso de Murrow, capaz de apresentar argumentos factuais em réplica aos vazios ataques de McCarthy.

Num conjunto de coisas, Boa Noite e Boa Sorte é uma obra extremamente bem realizada, de uma delicadeza incrível na abordagem de sua trama e de um ótimo gosto estético.

Ao que me parece, o filme tem apenas um defeito relevante, que reside na construção do roteiro e diz respeito à uma sub-trama protagonizada por Robert Downey Jr. como o jornalista Joe Wershba. Aqui, o filme nos apresenta um pequeno conflito envolvendo Wershba e sua esposa, ambos empregados da CBS, que, por sua vez, proíbe o relacionamento entre funcionários. Sem qualquer importância para a história ou para o interesse do publico, esse é o único ponto negativo do filme.

Boa Noite e Boa Sorte, o titulo do filme, é uma citação da frase de despedida de Murrow, reprisada ao fim de cada uma de suas transmissões, e essa é uma frase muito significativa, tanto mais pela entonação de Strathairn, que traz na voz a consciência dos riscos em fazer o que vem fazendo.

Ao que se despede, após trazer fatos e mais fatos sobre um lunático que constrói seu caminho rumo ao poder, Murrow, um homem que reconhece os perigos de gente como McCarthy, e vê nele o mesmo potencial de pessoas como Hitler ou Mussolini, entende que talvez não reste para a humanidade qualquer outra opção senão a própria sorte.

É de um certo modo, portanto, muito comovente ouvir essas palavras.

Boa Noite e Boa Sorte.

02 novembro, 2011

Caminhos da Mostra (II) - Desapego


O que está em jogo aqui é a sensibilidade humana.

Sabe como o mundo muda um pouco a cada dia e, da mesma forma, exige que mudemos, também? E dia após dia, durante uma série de anos, vamos nos transformando naquilo que a sociedade precisa que nos transformemos. E assim, cumprimos nossas tarefas diárias e sustentamos o organismo socioeconômico. E a uma certa altura, então, abrimos os olhos no meio da noite e nos perguntamos como é que tudo isso aconteceu e quando foi que viramos meros esboços de uma humanidade decadente.

É sobre isso tudo que Desapego tem a falar. O filme do diretor Tony Kaye aborda três semanas na vida de Henry Barthes (Adrien Brody), um professor substituto da rede pública de ensino nos Estados Unidos. A jornada de Barthes é um empenho em atingir a sensibilidade de seus alunos, de alguma maneira.

Combatendo com forças hercúleas um sistema de indiferença que por horas ameaça sua própria sanidade, Barthes tenta lidar com a total falta de perspectiva futura na vida da sociedade norte-americana. Desde a precariedade dos sistemas de saúde e ensino à sordidez das ruas, o herói do filme é afligido pela desumanização do individuo social. Há muito tempo que a consideração pelo outro deixou de ser parâmetro ético e passou a dar lugar aos interesses privados, acarretando num cenário urbano de corpos à venda e mentes alienadas.

Sob um certo aspecto é razoável entender que a jornada de Barthes é uma jornada épica onde o afeto é a grande razão de inspiração do herói.

O público, então, não tem como deixar de se compadecer pelo protagonista do filme, que não mede esforços em tentar tirar seus alunos dessa anestesia cotidiana. O que Barthes falha em perceber é que essa é uma batalha perdida e, pelo desenrolar do filme, é a tomada dessa consciência que vai abalando sua própria estrutura interna, ao ponto de quase sucumbir diante do mundo.

Em linhas gerais, o filme é um belo tratado sobre o esforço diário que os professores do sistema público empreendem, em perspectiva de um futuro digno para as gerações seguintes.

A abordagem dramática dessa realização de Kaye trabalha um certo realismo, mas sem jamais distanciar o espectador, muito pelo contrario.

Pelo desenrolar do filme, somos apresentados a depoimentos de Barthes, numa espécie de mocumentary. Nesses depoimentos, sua voz se torna cada vez mais grave e seu olhar cada vez mais melancólico. Durante o filme, alguns flashbacks de infância dão pistas sobre o passado devastador de seu protagonista e logo ficamos sabendo que nosso herói é mais uma vitima torturada pela miséria da vida. É justamente esse elemento que humaniza Barthes e compele o espectador à empatia, uma vez que o caráter magnânimo com o qual ele enfrenta a falência social parece torná-lo uma espécie de santo intocável, o que, não fosse justamente o contraponto dado por seu passado, acabaria por gerar a apatia do publico.

Afora alguns momentos onde seu discurso flerta com uma auto-ajuda barata, o personagem principal, bem como todos os outros a sua volta, é muito convincente e só faz é reforçar a noção de que nós, enquanto humanos, estamos caminhando para a falência de nossas qualidades essenciais.

Esse sentimento de implosão eminente, como se esse fosse um sistema insustentável, tem muito em comum com o sentimento gerado por filmes premiados mundo afora como o francês Entre os Muros da Escola, donde Desapego muito se inspira esteticamente, e com os documentários de Michael Moore.

Ao fim da sessão, no entanto, ao contrário de Entre os Muros ou dos filmes de Moore, não ficamos com a sensação de um aviso, nem tampouco somos impelidos a tomar uma atitude contra a corrupção de caráter gerada pelo dia a dia. Isso porque Desapego não é um alerta para a humanidade nem panfletagem política, é, sim, uma constatação triste e melancólica de nossa atual realidade.

Uma realidade, muito provavelmente, irreparável.

E a Mostra continua...

Caminhos da Mostra (I) - JESS+MOSS



O que a Mostra tem de melhor é sua capacidade de surpreender.

É nessa época do ano que entro em diversas salas de cinema, cidade afora, sem ter a menor idéia sobre o filme que estou prestes a assistir. Foi assim com JESS+MOSS.

Na realidade, minto quando digo que nada sabia sobre JESS+MOSS. Alguns dias antes havia lido uma pequena sinopse do filme. Sabia se tratar da relação entre uma menina e um menino em uma pequena cidade ao sul dos Estados Unidos.

Era o suficiente pra mim.

Pequenos fins de mundo ao sul dos Estados Unidos tem servido como cenário para filmes desde o cinema de Kazan (que, por acaso, tem uma ótima retrospectiva nessa Mostra).

Com Kazan, propriamente, nasceu a tradição de retratar os pequenos dramas de uma gente miserável em uma terra hostil.

E esse tipo de história carrega sempre uma melancolia irresistível, tendo atraído gente como Scorsese em seu “Alice Não Mora Mais Aqui”, Wim Wenders com “Paris, Texas”, Ridley Scott com “Thelma e Louise” e, obviamente, Bogdanovich com “A Ultima Sessão de Cinema”.

Bem, voltemos a JESS+MOSS. O diretor estreante, Clay Jeter, toma esse mesmo bastão em mãos e não desaponta, muito pelo contrário, encanta.

Eis um filme sobre um país (e, aqui, tomemos o sul dos EUA como um país a parte), abandonado e esquecido. Eis o retrato de uma terra sem memória ou referências, levada às tralhas pela modernidade. Eis um conto idílico sobre dois jovens retirados numa ilha imaginaria em meio à uma vasta terra.

Em meio a fragmentos de um passado onde a inocência era lei, JESS, a menina mais velha, tenta se agarrar a qualquer coisa que lhe dê a mesma segurança dos dias passados, onde tardes de verão em meio às plantações de milho eram regadas a limonada caseira. E MOSS, o menino mais novo, quer saber tudo sobre esses verões passados, sobre uma época em que as pessoas estavam amparadas numa tradição irretocável.

O grande problema para ambos é como evitar o choque de realidade causado pelo desamparo. Eles estão abandonados nessa terra. São os últimos espécimes de uma coleção já extinta. Não há mais vida nessa terra; não há mais tradição.

Os caminhos para entender JESS+MOSS, o filme, e Jess e Moss, os personagens, são vastos.

Esse é o tipo de cinema que te deixa imóvel alguns bons minutos após o término da sessão. Por isso, enquanto eu assistia ao passar dos créditos, tentava entender o que no filme havia mexido tanto comigo. E, bem, essa é a beleza da coisa, porque ele é de certa forma indecifrável.

JESS+MOSS é um filme sobre o confronto com o amadurecimento, mas é também um belo conto sobre um país sem memórias e, portanto, sem afeto. JESS+MOSS é um filme sobre tantas coisas ao mesmo tempo que talvez, no fim das contas, possa ser apenas um filme sobre dois jovens e nada mais.

Ainda que num primeiro momento não se tornem claras todas as intenções do filme é fácil entender o que nele me agrada tanto. Enquanto seres humanos, somos todos sensíveis ao mundo e é, portanto, essa sensibilidade que nos torna capaz de apreciar uma beleza legítima, tal como a que nasce dessa primeira obra-prima do diretor Clay Jeter.

E a Mostra continua...

14 junho, 2011

Repulsa ao Sexo



Enquanto anda pelas ruas de Londres, Catherine Deneuve exala todo o charme e sensualidade da genuína inibição feminina em meio a olhares que despem sua inocência e descobrem, sob a mascara de menina, uma mulher reprimida. E cada passo pelas ruas dessa Londres é marcado pelo evidente ritmo da Nouvelle Vague.

O ano é 65 e a revolução sexual está em alta. São vinte anos do término da 2ª Guerra Mundial e a miséria social na Europa, afora alguns pormenores, já tomou fim. Quanto à miséria humana, em vista dos horrores praticados na guerra e a repulsa social que foi gerada como sintoma, deu lugar ao marketing de comportamento.

Nesse contexto, sexo é comportamento e matéria social, saindo da sordidez dos quartos de hotel e virando fofoca em salão de beleza. Em uma última instância, cinco anos antes, Godard com Acossado é isso, mulheres gritando sua revolução sexual, pra todo mundo ouvir. Elas agora tem cabelos curtos e estudam jornalismo. E uma onda, uma nova onda, varre a Europa com essa demonstração pública de liberdade sexual, em todos seus níveis de conseqüência, naquilo que podemos considerar ser um impulso coletivo de defesa ante os meios de opressão vividos durante a guerra.

Repulsa ao Sexo, em questão, é um ensaio de teor psicológico que supõe, no momento da causa, todas as conseqüências que a nova ideologia sexual pode engendrar, do minuto que uma ditadura comportamental invade a privacidade das pessoas.

Mas, nem por isso a obra de Polanski é um parecer crítico dos movimentos sociais em voga na Europa. É, sim, um retrato de um fenômeno muito mais real e genuíno do que as falsas pretensões de ser bem resolvido na cama, enquanto se tem um Renoir na parede do quarto, como leva a sério Godard.

O contexto desses movimentos sociais está presente no filme, mas apenas como palco para todos os horrores traumáticos de sua heroína.

E o que Polanski faz aí é um tratado a respeito de toda a sordidez e perturbação que aflige as pessoas na cama, não importa se elas são velhas e feias ou se são a Catherine Deneuve.

Enquanto a Jean Seberg de Godard desfila pelas ruas de Paris, de calças justas e filósofos de baixo do braço, a Catherine Deneuve de Roman Polanski desfila por Londres com longos cabelos sobre o rosto e cabeça baixa. O interessante é perceber o vívido contraste que Polanski propõe, entre personagem e ambiente, quando, logo na primeira parte do longa, filma uma menina assustada, como um cão acuado, em um ritmo próprio da Nouvelle Vague.

Logo nos primeiros minutos de filme, então, temos todo o brilhantismo do cineasta. Por referência estética, Polanski situa sua personagem nessa nova Europa, de liberdades intelectuais e sexuais, numa instância em que essa personagem não faz parte desse movimento novo, mas, sim, sente-se reprimida por ele.

A maneira abrupta como fica imposto que as pessoas tem de expor e detalhar publicamente todas as minúcias de sua vida particular é fato, por demais, assustador para a virgem santa Carole (Catherine Deneuve).

Carole é uma jovem que mora sob os cuidados da irmã mais velha Helen (Yvonne Furneaux) e trabalha, onde mais senão, num salão de beleza. E assim o filme se abre. Ela trata de uma velha senhora, já em 65 com manias de juventude, que faz as unhas e cuida da pele. Entre uma cutícula e outra, essa senhora faz comentários e dá conselhos sobre como tratar os homens.

Entre uma cutícula e outra, o olhar de Carole fica mais e mais distante, e ela parece desconexa do mundo real.

É evidente que todo aquele charme e toda aquela beleza física forçaram a personagem a experimentar, em todas suas relações com o sexo oposto, o sentido de ser apenas um objeto de desejo e abuso.

Durante todo o decorrer do filme, isso fica cada vez mais claro, de modo que com cada conversa que a personagem ouve a respeito de homens, ela vai ficando mais introspectiva e distante da realidade, revelando, assim, apenas com olhares vazios, toda uma história pregressa de abuso e, conseqüente, repressão sexual.

É ai que se encontra todo o elemento catártico da obra, que caminha a passos curtos e se arrasta até alcançar seu ápice, na segunda metade do filme.

Conversas sobre relacionamentos, a dependência do sexo como fator social, e olhares de homens pelas ruas, são elementos que vão jogando Carole num estado de introspecção gradativa até o momento em que ela perde o senso de realidade e, aí então, o filme caminha pra uma intenção do retrato subjetivo e particular de uma mente levada à insanidade por pressões externas.

Quando sua irmã parte em viajem com o amante, Carole se vê sozinha e vulnerável. Já estamos na segunda metade do filme e, agora, o apartamento da jovem, seu lugar de isolamento e horror, já se torna um personagem que a assombra em suas dimensões variáveis e incompreensíveis.

O lugar é escuro, mórbido e praça livre pra qualquer tarado que queira vir e abusar de Carole. Isso é o que imagina uma menina que, por claro indicio fotográfico, já foi abusada pelo pai, e experimenta uma vida urbana onde sexo é imposição.

O assombramento da protagonista, diante desse espaço incoerente, se torna logo o assombramento do espectador, que experimenta desse horror psicológico junto com a personagem.

Pouco a pouco, a repressão dessa menina vai se transformando em pulsões maníacas e gestos como coçar o nariz repetidas vezes antecipam o assassinato de supostos pervertidos.

Num jogo de luz e sombra, que corre durante toda essa parte do longa, com clara influência do cinema expressionista, essa personalidade perturbada de Carole passa a vivenciar um cotidiano esquizofrênico que, não podendo ser de outra maneira, comete atos aflitos e, por fim, acaba entrando em colapso.

Com tudo isso, Polanski remonta um terror psicológico que expõe a fragilidade mental das pessoas, quando o assunto em questão é sexo. À época em que se situa, Polanski não pode deixar de circundar, então, esse ambiente de amor livre e, talvez inevitavelmente, desautorizar todo o discurso de exploração social do sexo.

Mas se fosse apenas isso, Repulsa ao Sexo estaria jazido na década de 60, sendo apenas revisitado por um curioso ou outro. E é por ir além de uma discussão social e tratar das ontológicas obsessões e traumas do ser humano acerca da sexualidade é que Polanski constrói terreno para, até mesmo, Von Trier e seu Anticristo.

24 maio, 2011

Freshdent


O importante é massagear as gengivas. Não de cima pra baixo, como muitos pensam. O segredo está em massagear as gengivas num sentido circular. Faça isso e você estará precavido de 95% dos problemas cotidianos. Essa é uma estimativa real.

Freshdent.


Ao terminar de ler o anúncio, o farol de um carro em alta velocidade lhe atinge os olhos e ele fica cego por um segundo, ou dois. Ao que tenta recobrar a visão, a multidão lhe esbarra, ombro a ombro. Olha pra cima e nota que o sinal pra pedestres está aberto. Ele recupera sua maleta da calçada e se junta aos desconhecidos. Foi um longo dia. 10 da noite e ainda não comeu nada. À mente, a lembrança fotográfica da geladeira, do flat em que vive. Uma maçã jogada no canto, uma caixa de leite de três dias atrás, um pedaço de bife da noite anterior e restos de pizza de sabe-se lá quando.

O bife – ele pensa– vou ficar com o bife.

Passo a passo. Cabeça baixa, olhos fixos nos sapatos. Alguns minutos ainda até chegar ao flat. Ele boceja. O gosto da fome lhe toma conta da boca.

Meu Deus – ele se espanta – talvez eu deva comprar aquela pasta de dente. É, bem, é isso que vou fazer, amanhã. Vou comprar uma caixa de Freshdent e passar a massagear minhas gengivas, isso deve servir pra alguma coisa.

A idéia de massagear as gengivas lhe dá um novo ânimo e o caminho para casa parece mais suave. Ele sabe, agora, que, amanhã, será um novo homem, diferente deste que caminha para casa, agora, sem jamais ter escovado as gengivas.

Pelo que resta do caminho, ele encara os olhos daqueles que vem na contramão.

Silhuetas de rostos, contornados pela meia luz de um poste atrás do outro. Na sua cabeça, rosto a rosto, peça a peça, se forma um mosaico urbano.

Olhos vazios e tristes, imersos em seus próprios pensamentos, perdidos nas obrigações futuras e nas cagadas passadas.

Ele se afasta de si mesmo, e observa seu próprio caminhar. O mesmo desamparo lhe é apresentado e ele vê olhos cansados, apenas pela razão de serem.

Ele tenta imaginar cada uma dessas pessoas em suas rotinas. Está certo que há 2, 3, 4 horas atrás elas eram só sorrisos simpáticos, acenos de cabeça obedientes e agentes de pequenas conversas sobre o tempo, política e meios de acabar com a fome no mundo. Assim como ele havia sido, há 2, 3, 4 horas atrás.

Dessas todas – ele imagina – algumas são quietas e apenas cumprem suas funções, esperançosas de cair rápido na cama, ao fim do dia. Outras conversam com todo o escritório, e arrumam compromisso para sexta à noite, quando ainda é segunda “Deus me livre ficar sozinho na sexta”. Outras, ainda, trabalham na Natura, porque tem ideais ecológicos e odeiam o sistema, mas, ainda assim, precisam pagar as contas, e a linha Natura-Eco concilia ideais com grana “Que bom que a Natura me entende”.

Ele continua a imaginar tudo isso, conforme caminha, mas não consegue deixar de perceber que, ao final do dia, é a falta de propósito e sentido que parece transformar, olhar por olhar, todas as pessoas numa grande massa indistinta, sufocada em sua própria solidão desesperadora.

Ele pensa a respeito da ilusão coletiva e acordada que corre durante as horas de trabalho.

Ele pensa no modo como todos simulam um propósito digno para se entregarem a longas jornadas destes trabalhos.

Mas ao que nota cada olhar, ele se dá conta do que já sabia há muito tempo. Ele se dá conta de que o único propósito para se fazerem miseráveis dessa tal maneira é o de ter garantido a certeza de poder massagear as gengivas com Freshdent.

Ou, talvez, não. Talvez ele não se de conta disso tudo. Talvez hoje tenha sido apenas mais uma caminhada de volta pra casa, ao fim de mais um cansativo expediente.

E talvez esse seja, apenas, eu. Delirando, com meu hálito amentolado.

23 maio, 2011

CONTROL


Hoje, assisti Control. E é o desenho pela mente de Curtis que traz, então, um caos manso e suave. O erro contemporâneo, de todos, o mais básico, é que atormenta toda a película. Um relacionamento prematuro, a formação de uma família e todos seus sintomas. E sem perder seu ritmo tranqüilo, o filme é inabalável. E o desespero de Curtis é subjetivo e jamais sentido pelo espectador, não fossem as cartas e anúncios de uma mente febril.

E cada passo é um erro e cada erro destrói e faz perder controle. Do anonimato à fama e, de tudo, ao fracasso pessoal, o tempo é o de um observador que assiste às ruínas finais do que construiu e, quieto, desmorona.

Seu destino é, há muito, anunciado. E a melancolia, desde sempre presente, não falha em agarrar, com mãos firmes, a corda e seu ultimo suspiro.

02 maio, 2011

A morte de Bin Laden pede uma Coca-Cola!


Quem é Emmanuel Goldstein, o inimigo público N˚ 1 do romance de George Orwell, 1984?

Goldstein é uma figura intocável, distante e abstrata. Uma ameaça real e constante que espreita a vida cotidiana e que coage os homens em um misto de terror e ódio.

Goldstein é quase uma entidade do terror e, por assim ser, não nos parece palpável. Aparece, sim, como um risco aterrorizante no distante horizonte.

A madrugada de 2 de maio de 2011 ficará marcada por um momento histórico em que o maior império do mundo se viu, cegamente, livre de seu Goldstein. Por algumas horas, a maior nação mundial comemorou, num delírio coletivo, a vingança da liberdade individual sobre o fanatismo.

Na Times Square, em Nova York, em frente à Casa Branca, em Washington, e por todo o resto da nação, multidões erguiam a bandeira americana, ostentado todos seus valores e direitos, ali, então, garantidos.

Obama foi à público e, assistido mundo afora, afirmou – O mundo é um lugar melhor por causa da morte de Osama Bin Laden –.

A euforia foi geral.

Com essas palavras, a livre iniciativa, a liberdade de expressão, a cidadania, a garantia de uma vida digna, um Big Mac e todos esses conceitos que vem no KIT USA, ficaram garantidos, sem mais temer que um maluco barbudo os pusesse em risco.

Entender que a morte de um homem não é o fim de um conflito entre modos de vida e percepção de mundo completamente díspares, parece insignificante quando a figurinha de ouro do Ocidente vem e diz – está tudo bem, agora –.

A clara evidência de que o pior está por vir não fica evidente na festa, em certa medida, nefasta da madrugada do dia 2.

O que não parece claro, também, mas que Orwell evidenciou para um mundo, obviamente, sem memória, é que Goldstein era um mito, uma forma clara de dominar uma população pelo medo.

Não faço coro com as vozes burras de teorias da conspiração ou qualquer coisa do gênero.

O que quero dizer é que, assim como Goldstein, Osama Bin Laden era uma figura abstrata que encarnava todos os conceitos destes fundamentalistas irracionais.

Como com Goldstein, o governo americano faz e desfaz uso dessas figuras para vender a imagem de um país livre e de uma liberdade que tem que ser defendida ao sangue de seus cidadãos, quando ameaçada pelo terror de alguns malucos.

E é em cima da figura de Bin Laden que se fortalece a imagem do herói que o combate. E todo mundo compra a esperança de um mundo melhor numa camiseta, porque: Yes, we can.

Se é ou não o fim da era do terror, se a morte de Bin Laden vai ou não tornar as coisas ainda pior, tudo isso pouco importa, contanto que se garanta a falsa certeza de poder comprar uma camiseta do Mickey Mouse sem ter um avião caindo na sua cabeça.

A realidade ou a verdade deixaram de ser parâmetros há muito tempo e é num mundo virtual, sem Osama, que Obama se reelege.

Nesse mundo de ignorantes, o importante é saber que existem razões para acreditar que tudo vai ficar bem.

O importante é saber que a cada tanque de guerra fabricado no mundo, são feitos 131 mil bichos de pelúcia.

O importante é saber que a cada corrupto, existem 8 mil doadores de sangue.

O importante é saber que para cada pessoa dizendo que tudo vai piorar, existem 100 casais planejando ter filhos.

O importante é saber que pra cada Osama existe um Obama.

Ah, como é fácil vender Coca-Cola.

09 abril, 2011

Adeus a Lumet


A morte de nossos cineastas, a lembrança da carreira.

A de Lumet, prolífica e inesquecível. Morreu hoje, aos 86.

Aos 33, sua primeira obra de arte foi um memorável tratado sobre alguns raros homens de bem tentando se impor em meio à barbárie da indiferença humana.

12 Homens e Uma Sentença é a sala claustrofóbica e opressiva que inspira o desespero inesquecível na cara de Henry Fonda.

É uma ultima investida na humanidade moribunda do homem moderno e que, com muito fervor e determinação, o personagem de Fonda consegue extrair de dentro de 11 homens esquivos aos problemas alheios.

Seria o primeiro de uma obra essencialmente humana.

O decorrer da carreira foi sempre um empenho em dialogar o homem com sua posição trágica, melancólica, sádica, irônica, revoltante e, por tudo isso, sempre bela.

Em sua maioria, são filmes sobre os homens do cotidiano, levados ao desespero por uma rotina da indiferença e da falta de um propósito digno de vida, como o é Kafka.

O empenho desses homens em pequenas revoluções particulares são o que levam seus filmes a conflitos memoráveis e catarses antológicas.

Vide a inesquecível cena de Rede de Intrigas onde o desespero humano nesse mundo cão se banaliza no espetáculo da mídia mas, ainda assim, representa uma revolução pessoal para cada pessoa que endossa o grito de Peter Finch: “ I`m as mad as hell, and I`m not gonna take this anymore”.

A beleza natural que emana, frame a frame, em cada um de seus filmes, é a da alma humana que se exprimi a cada dialogo e a cada ação por ele elaborados.

Um Dia de Cão, Serpico, Assassinato no Expresso Oriente, O Peso de Um Passado, Equus, Negócios de Família.

Todos tem em comum um retrato em particular.

Antes de retratos primorosos sobre o ser humano, são o reflexo de um homem que, como poucos, soube entender e falar do ser humano.

E como não comentar o ser humano que ele conseguiu extrair e fazer vivo, em cena, através de cada ator com quem trabalhou. Performances tão únicas e jamais reprisadas.

Peter Finch, Faye Dunaway, William Holden, Sean Connery, Dustin Hoffman, Al Pacino, River Phoenix, Robert Duvall, Phillip Seymour Hoffman, Christine Lahti e Richard Burton, pra falar de poucos.

Soube fazer homens e mulheres de cada um deles, no sentido mais essencial das palavras, sem temer, jamais, virtudes ou vícios.

Por tudo isso, ficará impresso em nossas memórias, a cada vez que assistirmos ou revermos uma de suas obras, uma pequena e encantadora peça do mosaico ímpar que foi sua carreira.

Uma carreira capaz de nos lembrar de nossas próprias questões humanas, geralmente encostadas entre uma pilha de papéis numa velha cômoda empoeirada.

Fire and Rain, Lumet.


(Texto re-publicado) Original: 19 de dezembro de 2010.


É uma suave noite de verão em alguma cidade qualquer ao sul dos Estados Unidos. Uma família comum, pai, mãe e dois filhos jantam acompanhados pela namorada do filho mais velho.

É uma cena simples. A cozinha e a sala de jantar estão em quadro. Afamília começa a retirar a mesa.

Enquanto fazem isso, o pai entoa “Fire and Rain”, canção de James Taylor. O canto solitário logo se transforma num coral e a musica embala a dança de toda a família. O filho mais velho dança com a mãe, enquanto o pai dança com a namorada do filho, logo trocam e o caçula dança com os pais enquanto o jovem casal se vê num primeiro momento de intimidade encabulada.

James Taylor acompanha as vozes que cantam apaixonadas, de uma sala de jantar, em uma casa qualquer de uma pequena cidade ao sul dos Estados Unidos.

Uma cena das mais simples, de poucos recursos técnicos ou estéticos. Ainda assim, uma cena de inconcebível dramaticidade. A típica família americana, em retrato, é na verdade uma família foragida da justiça, por um ato de vandalismo cometido pelos pais, anos antes.

Sempre em fuga, a nenhum dos filhos é dado o direito de criar afeto com o mundo. Por erro dos pais, devem sempre estar desapegados a qualquer coisa que os impeça de fugir.

A namorada em cena é o primeiro laço afetivo que um deles consegue criar. A cena do jantar, nesse contexto, tem um peso enorme. É, de certa forma, o confronto dos pais com a realidade de que terão que tomar uma escolha: ou se desvencilham do filho e seguem fugindo sem ele, para que então, ele possa viver uma vida comum ou continuam a fazer o filho carregar o peso do passado deles.

A primeira escolha implica em uma forte carga emocional para a família, uma vez que nunca mais voltariam a ver o filho, mas com genialidade essa decisão é retratada pelo simples ato do pai ceder a mão da namorada ao filho, durante uma simples dança ao fim de um jantar qualquer.

O filme é O Peso de Um Passado e o diretor é Sidney Lumet. Há pouco me lembrei deste filme e decidi procurar a cena na internet. Já tendo visto o filme antes, me encantei pela segunda vez.

Decidi escrever sobre a cena pelo o que ela representa. É a síntese do bom cinema. Por tudo o que descrevi acima, acho que dá pra entender o valor significativo de uma mera cena de jantar, quando bem contextualizada.

Esse é o tipo de cinema que Sidney Lumet sabe fazer. Em seus filmes a simplicidade fala muito.

Salvo algumas exceções mais recentes, sua carreira é a de um cineasta de respeito. Acho que O Peso de Um Passado, representado nesse texto pela tal cena do jantar, é suficientemente justo como uma representação do que Lumet é capaz.

Mais do que isso, do que o bom cinema é capaz.

Bem, que talvez o texto não tenha valido a pena, a dica vale, assista aos filmes de Lumet.


28 março, 2011

Hiroshima Mon Amour


Como outras, Hirsoshima, mais uma só cidade.
Mais uma história de amor. A inexatidão do tempo que dissolve a memória. E o sacrifício que é se prender a essa mesma história de amor. O esquecimento é rememorado e dói saber que há de se esquecer. E um amor com outro rosto, não terá o mesmo sabor trágico?

Hiroshima, mon amour.

25 fevereiro, 2011

Especial Oscar 2011 - Bravura Indômita


Os Coen são os cineastas da moralidade. Moralidade através do estranhamento. Moralidade através da tragédia.

Quando trabalham nessa chave, realizam filmes memoráveis como “Gosto de Sangue”, “O Homem Que Não Estava Lá”, “Fargo”, “Um Homem Sério”, “Barton Fink” e, em especial, “Onde Os Fracos Não Tem Vez”.

Além disso, prezam a estética como poucos. Prezam a estética em favor do retrato moral.

São raros seus deslizes ou equívocos.

Sua ultima produção “Bravura Indômita”, no entanto, não é tanto um deslize, pois bem realizado, mas é definitivamente um equívoco.

Posso estar enganado, mas tenho quase certeza que esta é a primeira re-filmagem que realizam.

Adaptação do longa de mesmo titulo, do diretor Henry Hathaway, o filme dos Coen não mostra ao que veio.

Para aqueles que não tenham assistido ao original, de 1969, o “Bravura Indômita” dos irmãos pode aparecer como uma bela história bem realizada, sobre uma garota determinada em vingar a morte do pai, descobrindo, por fim, que bem algum fora tirado dessa vingança.

E é exatamente isso que o filme dos Coen é, assim como o é a produção de 69.

O que quero dizer é que essa refilmagem não traz nada de novo em relação ao seu original, seja no campo simbólico da moral, seja puramente na história narrada.

A não ser pelas atuações, que conseguem sair da sombra dos atores do original, em especial o destaque de Jeff Bridges, em relação ao John Wayne, a concepção do filme não tem nenhum sentido prático, a não ser fazer-se mais um filme Hollywoodiano nas prateleiras.

Sou grande admirador do cinema dos Coen, mas como toda carreira, a deles também tem seus percalços, num primeiro momento, o horrível “Matadores de Velhinha” e agora “Bravura Indômita” que, não me entenda mal, não é um mau filme, apenas não tem um propósito em existir.


Indicações

Melhor Filme

Melhor Direção – Joel e Ethan Coen

Melhor Ator – Jeff Bridges

Melhor Atriz Coadjuvante – Hailee Steinfeld

Melhor Roteiro Adaptado

Melhor Fotografia

Melhor Direção de Arte

Melhor Figurino

Melhor Edição de Som

Melhor Mixagem de Som


Chances no Oscar

Bem, sem dúvidas, por tudo que disse acima, acredito que o filme não se destacara na categoria de melhor filme, enquanto que, em direção, os Coen tiveram seus anos, com melhores filmes.

Fotografia, a prévia dada por outras premiações mostra que “Bravura” não vem com muita força.

Quanto as atuações, Bridges tem um Oscar muito recente em sua prateleira e esse é o ano de Colin Firth enquanto que Hailee, bem, tem que esperar mais alguns anos.

No resto das categorias, técnicas, tudo que eu disser será no chutomêtro. Palpito que tenha boas chances em Arte e em Figurino.

Roteiro Adaptado é outro prêmio que passa longe de suas mãos.

Enfim, tem grandes chances de sair sem nada.

22 fevereiro, 2011

Especial Oscar 2011 - Cisne Negro


Se há, em todo o campo das artes, alguma ambição por harmonia ou pelo equilíbrio perfeito, é no balé que essa ambição é máxima.

Não podia ser de outra forma, então, que ao fazer um retrato do transcendental embate entre ordem e caos, Darren Aronofsky optasse pelo retrato dessa arte em especifico.

Nina, uma bailarina recatada, frígida, “santinha” e uma série de outros adjetivos que só lhe são cabíveis pela forma opressora como fora criada pela mãe, faz parte de uma companhia de balé que trabalha na produção do clássico de Tchaikovsky, “O Lago dos Cisnes”.

O diretor da companhia, Thomas Leroy (Vincent Cassel), não falha ao notar em Nina a perfeita encarnação do cisne branco, com toda sua doçura e ingenuidade.

Para tal papel, o desempenho de Nina é perfeito. O problema, em fato, é que, ambos, o cisne branco e o cisne negro deverão ser vividos por uma mesma bailarina.

O segundo, Leroy também é capaz de notar em Nina, do contrário não a teria escolhido. Contudo, Leroy sabe bem, o cisne negro se esconde num inconsciente, quase visceral, da protagonista.

Criada numa rotina de regras e imposições de sua mãe, uma ex-bailarina fracassada, Nina fora moldada a forjar seus impulsos e instintos em ordem e perfeccionismo.

Não podia ser de outra maneira, então, que o outro lado da moeda, o caos, a desordem e o desejo doentio, viesse a tona, em algum momento.

É exatamente assim que, esperando por esse momento, o filme inteiro se desenrola.

Nascida, como todo homem e mulher na face da terra, do ventre de Apolo e Dionísio, Nina tenta, a todo tempo, combater sua dimensão dionisíaca, o que a impede de incorporar toda a verdade que há no cisne negro.

Leroy sabe disso e, portanto, faz é instigar esse lado mais carnal, sujo e inconseqüente que há em Nina. Para isso, faz um jogo de manipulação na mente da protagonista, ao relacionar-se com Lilly, uma outra bailarina da companhia que é, justamente, o oposto de Nina. Lilly é tudo aquilo que está camuflado em Nina e que deverá se revelar.

Enciumada e temente, ante a perspectiva de perder seu papel como protagonista, Nina procura se aproximar de Lilly e tentar incorporar aquilo que em sua outra metade.

Dessa relação, Nina começa a ter delírios, que são, em fato, simbolismos dessa mesma relação, num sentido de que o único objetivo pretendido, por ela, é o de possuir tudo aquilo que vê em Lilly.

É, portanto, emblemática a cena em que ambas transam no quarto de Nina, com a mãe dela à porta. Num delírio antropofágico, Nina finalmente assume seu tesão pela vida, ao mesmo tempo em que quebra com as barreiras criadas por sua mãe.

Pode-se dizer que a grande ambição de Nina é conseguir atingir a harmonia suprema, alcançando o perfeito equilíbrio entre as duas dimensões da vida, criando, assim, a mais pura representação do balé. Essa mesma intenção de Nina é, também, o verdadeiro discurso do filme sobre a alma humana: o irreparável desejo de alcançar a harmonia e a perfeição, mas que só resulta em destruição.

Quando finalmente sobe ao palco, para a estréia da peça, Nina é a redenção do ser humano, desgraçado por natureza.

Em seu ato final, toda a simplicidade e toda a complexidade, toda ternura e repulsa, todo tesão e ódio, enfim, toda a dualidade jamais encarnada nos homens, evapora, num ultimo delírio de perfeição.


Indicações

Melhor Filme

Melhor Direção – Darren Aronofsky

Melhor Atriz – Natalie Portman

Melhor Fotografia

Melhor Edição


Chances no Oscar

Se todo o esforço desempenhado por Nina para alcançar a perfeição tem resultado trágico, o destino de Natalie Portman está a um passo da tragédia.

Seu retrato preciso, não de uma personagem, mas de todo o espírito humano, é antológico. Acredito nunca ter visto tamanha dedicação para um papel. Além disso, Aronofsky, de alguma maneira, elabora um desarme para atriz. Portman está fragilizada e suscetível a todo e qualquer bombardeio que possa lhe vir nas cenas. Ao mesmo tempo, ela aparece aberta e disposta a receber o que quer que lhe seja atirado. É impossível pensar na realização deste filme, em sua qualidade atual, discriminando o desempenho de Portman, essencial ao discurso. Portman é ora comedida, ora visceral, um espetáculo. Não falharão as previsões que lhe julguem vencedora em sua categoria, esse Oscar já é dela, desde o primeiro momento em que as cortinas de “O Lago dos Cisnes” se fecharam pela primeira vez.

Apesar de magistral e belo, como somente esse filme é, acredito que o premio de melhor filme lhe escapa por entre os dedos, numa maior consideração com “A Rede Social” e seu diretor, David Fincher (já há algum tempo merecedor do Oscar).

Melhor direção, como suponho, ficara com o Fincher, fazendo do Aronofsky um novo injustiçado.

E, entre melhor edição e melhor fotografia, acredito que os realizadores de “Cisne Negro” terão de se contentar com a Natalie Portman.

Talvez a noite do dia 27 me prove errado. Se for o caso, não ficarei desapontado.

21 fevereiro, 2011

Especial Oscar 2011 - A Origem


Christopher Nolan sabe, como poucos, instigar o espectador. De seus filmes, pode-se definir: arrebatadores.

Sempre em proporções monumentais, suas realizações são investidas que procuram nocautear os sentidos de quem as assiste.

Sem dúvidas, merecem todas ser vistas nos cinemas.

“A Origem” não é exceção, pelo contrário, é um de seus filmes que mais faz valer essa regra.

Aqui, Nolan brinca com os limites da percepção sobre a realidade, nada de muito inovador até ai, se lembrarmos de Matrix.

O destaque está na abordagem e na construção narrativa do roteiro.

Pode-se entender o longa como uma série de núcleos, onde cada núcleo é um estágio de sonho pelo qual os personagens transitam.

Pelo tempo em que a projeção corre, o espectador pode, e deverá, ficar confuso. Essa é uma das especialidades do diretor, vide o ótimo “Amnésia”.

Mas, após assistido e bem pensado, o longa não apresenta tantas dificuldades para ser decifrado, como pode parecer num primeiro momento, até porque seu verdadeiro objetivo não é deixar claro o que é real e o que não é.

Toda a graça do filme está, justamente, em manipular os limites da realidade, como que andando sobre uma tênue linha entre o real e sonho. Desse modo, evoca temas como coragem e fraqueza, ao entender-se que para sair de um sonho, o personagem deverá morre de alguma forma.

Nesse sentido há uma abordagem acerca da coragem de perceber o que é ou não real, e matar-se, afim de voltar a realidade.

Também, nesse ponto, o filme flerta com a loucura.

E, então, é bela a cena em que a personagem da ótima Marion Cotillard (Mal), esposa de Cobb (Leonardo DiCaprio), se joga do alto de um prédio onde, sob o ponto de vista de Cobb, toma o real por sonho.

A grande pergunta do filme é: não estaria, talvez, Cobb a tomar o sonho por realidade, preso num limbo criado por ele mesmo, destinado a sofrer a morte da mulher e a perda dos filhos?

Longe de ser um retrato de moralidade, e sem nem pretender isso, “A Origem” é, acima de tudo, um ótimo divertimento.

Em seguida, um quebra-cabeças que distorce as noções de um mundo palpável e concreto, dando lugar ao incompreensível imaginário humano.

Pode-se dizer, é um filme de fronteiras. Fronteiras que fazem limite entre o real, o imaginário e a loucura.

Claro, em uma primeira instancia, também, um excelente filme de ação e efeitos visuais primorosos.

Quanto a isso, ainda, de qualidades técnicas o filme está cheio. Basicamente se faz em cima disso. Vale apontar, sobretudo, a trilha de Hans Zimmer, que basicamente dá o tom do filme.


Indicações

Melhor Filme

Melhor Roteiro Original

Melhor Fotografia

Melhor Direção de Arte

Melhor Trilha Sonora

Melhor Edição de Som

Melhor Mixagem de Som

Melhores Efeitos Especiais


Chances no Oscar

Apesar de ser um filme de proporções enormes, também levando em conta o retorno nas bilheterias, “A Origem” não me parece ter muitas chances na categoria de melhor filme. Já quanto a melhor roteiro original, a concepção do filme, bem como sua linha dramática, e a solução encontrada para resolver o empecilho das diversas camadas de sonho, só aumentam as chances da provável vitória do filme nessa categoria.

Nas categorias técnicas, pelo modo impecável como fora elaborado, acredito que vença melhor edição de som, melhor mixagem de som e melhores efeitos especiais.

Direção de arte, fotografia e trilha sonora, por mais perfeita que tenha sido a criação de Zimmer, penso que o filme passara em branco.

Especial Oscar 2011 - Minhas Mães e Meu Pai


O circuito de filmes independentes anda em alta em Hollywood e, a cada ano, ao menos uma produção do meio é indicada ao Oscar de melhor filme, como foram os casos de “Pequena Miss Sunshine” e “Juno”.

A bola da vez é o longa da diretora Lisa Cholodenko, “Minhas Mães e Meu Pai”.

Um tratado, ora cômico, ora dramático, sobre a queda da família tradicional, bem como um retrato da família moderna, o filme é eficiente em seu argumento sobre como as alegrias e dramas familiares são algo inerente a sua estrutura e discriminam qualidades.

Desse modo, quando os dois jovens, filhos de um casal de lésbicas, tentam procurar o pai biológico, descobrem nele, não uma figura paterna, mas alguém completamente dispensável em suas vidas.

A jornada da busca pelo pai biológico se revela no encontro de um pai, tão somente, biológico e na descoberta de que a figura paterna já estava, há muito tempo, presente em suas vidas, por parte das mães.

Assim, a trama se revela, mais uma vez, um ensaio sobre o afeto como objeto que não discrimina qualidades ou gêneros.

Apesar da pertinência que há no tema e da eficiência em como fora abordado, sendo, ainda, um filme divertido, “Minhas Mães e Meus Pais” está longe de ser um filme memorável e não merece nenhum lugar de destaque na história do cinema.

De méritos, o longa está cheio, mas de memorável, somente as atuações de Annete Bening e Julianne Moore, mesmo. Não tanto separadamente, mas juntas na tela, as duas tem uma química vista pouquíssimas vezes antes.

Muito mais do que atuar, elas vivem, de fato, um casal. E é essa representação perfeita, das duas, que dá força a todo o argumento do longa.


Indicações

Melhor Filme

Melhor Ator Coadjuvante – Mark Ruffalo

Melhor Atriz – Annete Bening

Melhor Roteiro Original

Chances no Oscar

Como foi dito, apesar da pertinência da trama, “Minhas Mães e Meu Pai” não tem o menor peso para desbancar qualquer de seus outros nove concorrentes e, apesar da força que há na atuação de Annete Bening e, em menor grau, até mesmo na atuação de Mark Ruffalo, nenhum dos dois aparecem como favoritos em suas respectivas categorias. Também, quanto a roteiro original, o filme não é páreo aos seus concorrentes.

Minha aposta: sai de mãos vazias.

Especial Oscar 2011 - Toy Story 3


Em 1995 a Pixar lançava seu primeiro longa-metragem, Toy Story, e dava inicio a uma nova era de animação digital. De lá pra cá, o conceito pegou e grande parte do mercado de animação investiu na tecnologia.

Em 99, a retomada da trama sobre brinquedos que ganham vida passou relativamente desapercebida, sem muito potencial para se destacar das outras animações no mercado, ou fazer jus ao primeiro longa.

Dez anos mais tarde, com Avatar, 2009 foi o marco do cinema 3D como uma nova forma, muito concreta, de entretenimento na industria cinematográfica, enquanto que 2010 foi o ano em que todas as bobagens possíveis foram produzidas sob esse formato.

Ainda assim, o momento pareceu ideal para revisitar e prestigiar aquele que foi o pai da animação como hoje é conhecida.

A série parece ter crescido lado a lado com aquela geração que acompanhou as aventuras de Woody e Buzz, em 95.

Toda uma geração de crianças, daquela época, hoje é apresentada à maturidade.

E Toy Story, que cresceu junto com essa geração, tem em seu terceiro longa, uma doce despedida do passado.

Andy é a representação máxima dessa geração e, enquanto se encaminha para uma nova fase de sua vida, tem de descobrir o que fazer com aqueles brinquedos que fantasiaram seu passado.

Por fim, os brinquedos são passados à uma nova geração, como deverá acontecer com a série. Imortalizando-se, ao encantar com toda sua graça e beleza, geração após geração.

Indicações

Melhor Filme

Melhor Animação

Melhor Roteiro Adaptado

Melhor Edição de Som

Melhor Canção Original

Chances no Oscar

É fato que, como melhor filme, o longa de Lee Unkrich não tem a menor chance de ganhar. Está na lista apenas para encher lingüiça entre 10 indicados. Mas é fato, também, que é candidato certo para ganhar melhor animação, ainda que “O Mágico” (homenagem a Jacques Tati) tenha ótimas recomendações. Isso porque é uma bela forma de prestigiar a conclusão de uma trilogia que encantou platéias e revitalizou a animação como forma de arte e entretenimento. Das outra indicações, o longa tem alguma chance na categoria de melhor canção original, com a composição “We Belong Together”, de Randy Newman.

24 janeiro, 2011

Quem Matou Jesse James?


E uma lenda viva que padece flerta com a morte. E Jesse James é imortal.

E eu vejo um balé na vastidão do velho oeste. É lá, no distante horizonte, que dois vultos são imagem e sombra.

Em perfeita harmonia, equilíbrio e cadência, um balé que se encaminha para o que é predestinado.

E eu vejo esses distintos vultos, num ambiente próprio para o ostracismo e carente de suas lendas.

Vejo selarem um pacto silencioso, quando a aproximação mais intima é a morte.

Pois quando o herói é falho, resta à morte lhe provar humano. E a morte faz a lenda.

E o tiro pelas costas é muito menos um ato de covardia do que um pacto há muito tempo firmado.

E quando uma bela dança como essa se encaminha ao desfecho final, o estopim da arma busca o aplauso da platéia, que nunca vem.

E é o olhar carente, indefeso e ingênuo que saí ferido e que é tomado por covarde.

E o olhar que faz a lenda é pra sempre esquecido.

09 janeiro, 2011

Bagdad Café


Ao meio de lugar algum, pelo deserto do Mojave, um pequeno café. Por ali, personagens tão distintos e improváveis, que surreais. Surreais como um Magritte.

E é a miséria da rotina que massacra o cotidiano de cada pobre alma que paira inerte sobre a imensidão arrastada de um deserto sem tempo.

Enquanto isso, ferve o sol que traz à mente a loucura. E a pele da negra louca é só suor e a mente é só desespero. E o resto é desamparo.

De onde quer que seja, da Alemanha, vem ao café uma senhora simpática, recém largada pelo marido, no meio da estrada no deserto do Mojave.

E como se fosse um bom filme, invés de uma bela história, uma negra, perdida em seu café ao meio do deserto, cercada de seus dois filhos, seu neto, e alguns hóspedes de seu hotel barato, encontra conforto na improvável estranha vinda de alguma parte da Europa.

E Bagdad Café é uma ilustração das relações humanas, em seu fragmento de mundo, em meio ao deserto do Mojave. E como é improvável o amparo que se encontra no outro quando a falta de perspectiva vai alem do horizonte de um deserto, e a mente ferve, solitária, sob o sol.

E Bagdad Café, em toda sua simplicidade, enigmático como um Magritte.

07 janeiro, 2011

O Pequeno Fogueteiro


Exemplar ao alto. Da esquina, o grito do jovem jornaleiro anunciava a morte do Pequeno Fogueteiro.

Tristes olhos estampados na capa. A manchete confirmava – A CAÇADA CHEGOU AO FIM, PEQUENO FOGUETEIRO É MORTO A TIROS, PELA POLÍCIA -.

Acompanhados de suas senhoras, os cavalheiros lançavam uma moeda ao jornaleiro. E a noticia corria a cidade. A segurança dos nobres era retomada.

Na praça, as crianças reencenavam o ato; armadas de gravetos, cuspiam fogo no gordinho da turma, o pequeno fogueteiro. E como eram tristes os olhos do garoto gordo, em sua morte forjada.

Nada de julgamento, chance alguma ao pequeno fogueteiro. Os olhos tristes e sem vida, que agora estampavam todas as manchetes de jornais, não tiravam juízo da morte, nem tampouco da vida que a antecedera.

Era como se morresse sem entender o motivo. Isso fez a ira de toda a cidade. O modo como o criminoso parecia não reconhecer o crime.

Como o cão que falha em ser obediente, o Pequeno Fogueteiro morria inocente.

Inocentado pelo retrato de seu momento final.

À sua defesa vieram alguns colegas de picadeiro.

Em pequeno palanque, montado na praça central, o mímico ilustrava as palavras do palhaço chorão, que cantava a tristeza do solitário colega, de habito incendiário. Aquela, mais ao canto do palanque, a que chorava tanto, de borrar maquiagem, ex-assistente de Nicolai, nome artístico do Pequeno Fogueteiro, era consolada pelo gigante que lhe acariciava a cabeça, dando a sensação de que fosse esmagá-la como a uma laranja.

E era com laranjas, e maças e repolhos, e ovos e o que mais que fosse, que eram recebidos os amigos do assassino.

E cantavam, ainda assim, em defesa.

Oh, Nicolai,

o Pequeno Fogueteiro, de tardes alegres,

ovacionado pelo publico

que assistia fascinado ao

teu espetáculo

Oh, Nicolai,

de noites solitárias

e olhos d’água

e que coração triste,

e que vida amarga.

E o dia que o Carranca,

sujeito baixinho, bigode fino

e pança larga

te chutou a bunda baixa pra longe do circo amado.

O coração triste

não sabia do mundo.

Veio à luz por mãe contorcionista,

filho de pai malabarista.

Ainda menor,

já veio filho do circo.

Te faltou rumo,

e teu norte eram teus fogos.

E como voavam aquelas casas,

e como eram belos teus shows pela cidade

capaz de iluminar as noites mais escuras, deste lugar

frio

e duro.

E choviam móveis, e comida

e as casas sem gente

cuspiam tudo pra fora

e lá de longe,

do circo armado nas montanhas,

teu espetáculo era belo, fogueteiro.

Ainda que chorasse, e chorasse

e ah,

como chorava a dona de casa.

Nada como tua luz,

que tudo iluminava.

Teus olhos, sem vida

nada entenderam,

mas teu espírito

e não teu juízo

é que era odioso,

pobre fogueteiro.

06 janeiro, 2011

E o Belas Artes...



Foi em janeiro de 2008, a primeira vez que entrei no Belas Artes. Pela primeira vez na vida, entrava em um cinema de rua.

Tinha ido assistir Paranoid Park. Naquela mesma semana, voltei ao cinema mais duas vezes, para assistir ao mesmo filme.

Ótimo filme, lugar agradável.

Estava de passagem em São Paulo, ficando na cidade só pelo mês de janeiro; mês durante o qual voltei mais algumas vezes ao Belas Artes.

Em 2009, me mudei definitivamente para a cidade e dai, então, são varias as lembranças.

Lembro de Seymour Hoffman brilhante em Synedoche, lembro de alguns mais do mesmo de Woody Allen, lembro, também, de Sophia Loren e Mastroianni, dançando na privacidade de um pequeno apartamento, sob o regime fascista, ou Mastroianni, grotesco, em sua Comilança.

A Infância de Ivan, vi numa cópia terrível, mas ainda assim, vi Tarkovsky em um cinema, vi no Belas Artes.

Lembro de tantos ônibus que peguei na Angélica, sob chuva, e desci na Consolação, à porta do cinema. E o povo todo se espremia dentro do saguão, longe da chuva. Alguns apenas se refugiando. Outra grande maioria, esperando a sessão começar.

Lembro de reclamar das duas salas que tinham suas fileiras, todas, no mesmo nível.

Não lembro, jamais, de reclamar da programação.

Se tinha medo que um filme de exibição rara, possível somente no Belas Artes, fosse esgotar, chegava umas duas horas antes da sessão. Tomava um café no balcão e lia alguns artigos no mural de jornais.

E assim são as coisas.

Como no filme de Van Sant, aquele que foi meu primeiro no Belas Artes, de cenas belas, suaves e contemplativas, o Belas Artes, que logo não será mais, ficará na memória dessa mesma maneira; um lugar onde se podia contemplar, suavemente, a raridade que é o bom cinema.