30 dezembro, 2010

Top 10 da Década



Tarefa ingrata, escolher os melhores filmes da década que passou. Ainda que tenha sido uma década fraca para o cinema, mais do que 10 filmes mereciam ser listados.

Dogville (2003) - Lars Von Trier

Onde os Fracos Não Tem Vez (2007) - Joel e Ethan Coen

Paranoid Park (2007) - Gus Van Sant

Batman - O Cavaleiro das Trevas (2008) - Christopher Nolan

O Segredo dos Seus Olhos (2009) - Juan José Campanella

A Vida dos Outros (2006) - Florian Henckel von Donnersmarck

Cidade de Deus (2002) - Fernando Meirelles

Adeus, Lênin! (2003) - Wolfgang Becker

Réquiem Para Um Sonho (2000) - Darren Aronofsky

Wall-E (2008) - Andrew Staton

19 dezembro, 2010

Sidney Lumet


É uma suave noite de verão em alguma cidade qualquer ao sul dos Estados Unidos. Uma família comum, pai, mãe e dois filhos jantam acompanhados pela namorada do filho mais velho.

É uma cena simples. A cozinha e a sala de jantar estão em quadro. A família começa a retirar a mesa.

Enquanto fazem isso, o pai entoa “Fire and Rain”, canção de James Taylor. O canto solitário logo se transforma num coral e a musica embala a dança de toda a família. O filho mais velho dança com a mãe, enquanto o pai dança com a namorada do filho, logo trocam e o caçula dança com os pais enquanto o jovem casal se vê num primeiro momento de intimidade encabulada.

James Taylor acompanha as vozes que cantam apaixonadas, de uma sala de jantar, em uma casa qualquer de uma pequena cidade ao sul dos Estados Unidos.

Uma cena das mais simples, de poucos recursos técnicos ou estéticos. Ainda assim, uma cena de inconcebível dramaticidade. A típica família americana, em retrato, é na verdade uma família foragida da justiça, por um ato de vandalismo cometido pelos pais, anos antes.

Sempre em fuga, a nenhum dos filhos é dado o direito de criar afeto com o mundo. Por erro dos pais, devem sempre estar desapegados a qualquer coisa que os impeça de fugir.

A namorada em cena é o primeiro laço afetivo que um deles consegue criar. A cena do jantar, nesse contexto, tem um peso enorme. É, de certa forma, o confronto dos pais com a realidade de que terão que tomar uma escolha: ou se desvencilham do filho e seguem fugindo sem ele, para que então, ele possa viver uma vida comum ou continuam a fazer o filho carregar o peso do passado deles.

A primeira escolha implica em uma forte carga emocional para a família, uma vez que nunca mais voltariam a ver o filho, mas com genialidade essa decisão é retratada pelo simples ato do pai ceder a mão da namorada ao filho, durante uma simples dança ao fim de um jantar qualquer.

O filme é O Peso de Um Passado e o diretor é Sidney Lumet. Há pouco me lembrei deste filme e decidi procurar a cena na internet. Já tendo visto o filme antes, me encantei pela segunda vez.

Decidi escrever sobre a cena pelo o que ela representa. É a síntese do bom cinema. Por tudo o que descrevi acima, acho que dá pra entender o valor significativo de uma mera cena de jantar, quando bem contextualizada.

Esse é o tipo de cinema que Sidney Lumet sabe fazer. Em seus filmes a simplicidade fala muito.

Salvo algumas exceções mais recentes, sua carreira é a de um cineasta de respeito. Acho que O Peso de Um Passado, representado nesse texto pela tal cena do jantar, é suficientemente justo como uma representação do que Lumet é capaz.

Mais do que isso, do que o bom cinema é capaz.

Bem, que talvez o texto não tenha valido a pena, a dica vale, assista aos filmes de Lumet.

29 novembro, 2010

Tetro


Bennie, um rapaz prestes a completar 18 anos, vai visitar seu irmão, há muito sumido, na Argentina.

Lá, Bennie encontra uma pessoa completamente diferente daquela que lhe deixou um comovido bilhete de despedida fundado na promessa de um dia retornar para buscar o irmão mais novo.

Tetro, irmão de Bennie, teria se mudado dos EUA pra Argentina na esperança de se tornar um escritor, tarefa que acaba deixando de lado. Agora, vivendo com sua namorada Miranda, Tetro vive uma vida sem ambições e seu jeito introspectivo revela que esconde segredos.

Filhos de mães diferentes, sabemos, logo de cara, que ambos fogem de algo – o pai –.

Todo o filme se desenvolve em ritmo com a relação entre os irmãos, uma relação que Tetro, evidentemente, evita.

Fica bem claro, logo de inicio, que é esta mesma relação que vai trazer à tona os segredos sobre a vida de ambos e é por meio de um romance inacabado de seu irmão que Bennie vai remontar sua própria história, esperando que o irmão lhe dê o toque final, que falta na obra, capaz de fechar o mistério sobre sua própria vida.

Em linhas gerais, Tetro – o filme – é isso, um romance de proporções trágicas que monta o retrato familiar como um espaço de mentiras, mágoas e ressentimentos.

O pai de ambos, um maestro de renome, frustra deliberadamente os sonhos dos filhos ao ofuscar-lhes com seu brilho musical.

Isso é o que vamos descobrindo ao longo da película, que alterna presente e passado.

O choque estético, ainda, entre presente e passado, causa um baque entre um passado real, concreto e palpável, onde as verdades daquele mundo maquiavélico, forjado pelo pai, machucam os filhos, e um presente quase lúdico, onde mentiras preservam a distancia abismal entre os irmãos.

Aos poucos descobrimos que Tetro causou um acidente de carro que levou sua mãe à morte. Num filme de vasto repertório de significados e simbolismos, talvez esta cena da morte da mãe seja a de maior importância na chave simbólica.

Logo após bater o carro, uma luz do carro da frente ilumina o rosto de Tetro, enquanto ele a encara fixamente.

Quando chega no local do acidente, o pai de Tetro o encara magnânimo, como que pondo o filho sob um holofote e lhe dizendo que estava decepcionado pela tragédia que trouxe à família, mas que sendo, ele próprio, superior, poderia perdoar o filho.

É recorrente esse simbolismo da luz, de modo que Tetro se torna iluminista num teatro em Buenos Aires, na expectativa de tirar de cima dele os olhares possíveis, como os que o pai lhe dirigira a vida toda.

Ainda assim, esse é apenas um de um vasto repertório de significados engendrados de uma estética impecável. Estética que suporta um momento presente, na narrativa, onde tudo é incerto, ainda mais pelo olhar de Bennie, que tateia seu caminho em direção a verdade sobre sua vida.

Numa cena emblemática, também, antevendo que os segredos sobre seu passado e de seu irmão viriam a tona, Tetro fala à sua namorada – Bennie is... –.

Interrompendo a fala, ele toma assento no banco de passageiro de um carro, mesmo lugar onde sua mãe morrera enquanto ele dirigia, referindo-se ao fato de que seu irmão, como ele conhecia até então, seria morto pelo que Tetro viria a contar-lhe.

Nasceria, então, um novo Bennie, livre das mentiras em que o pai o envolvera, e ao irmão.

Fora de um mundo forjado pelas mentiras do pai, ambos sairiam do holofote que impedia-lhes de seguir uma vida própria. E é no funeral do pai, já ciente das verdades sobre sua vida, que Bennie lança fogo sobre o retrato do maestro soberano.

Num momento tipicamente trágico, então, o fogo – símbolo maximo da técnica – consome a imagem daquele que tão bem soube dominar instrumentos.

A imagem do patriarca é, finalmente, deformada, quando expostas suas mentiras.

Quanto à contextualização do filme, Coppola ambienta seus personagens na passional Buenos Aires, à se esperar que ajam em correspondência.

Nesse ambiente não há um elemento ou personagem que não suporte o trajeto de Bennie – saindo de seu mundo de mentiras e abrindo espaço pelo mundo fechado das verdades que só o irmão conhece –.

Assim, ainda, Tetro tira de si o fardo da verdade.

Nesse ponto, é interessante o trabalho de espelhos que Coppola cria, onde, para poder traduzir o romance autobiográfico do irmão, escrito em código (ao inverso), Bennie precisa de um espelho, no sentido de que ao traduzir as palavras, o espelho revela a face do próprio Bennie.

Tetro é, enfim, um filme pensado com o brilhantismo de seu diretor e trabalhado por mãos impecáveis, capazes de fazer compreensíveis toda uma gama de significados que suportam aquilo que poderia ser só mais um drama familiar besta, mas que, por assim ser bem feito, se torna um texto trágico e belo.

Ainda, talvez, o final do filme, num instante mais imediato, pareça um tanto arrastado, mas após digerido fica fácil ver que cada “falso” clímax atenta o espectador para um desfecho perfeito.

16 novembro, 2010

Expedição Marte


Ouvi a história de um tempo onde os homens falavam de uma missão colonizadora à Marte.

Uma só passagem de ida, algo relacionado a barateamento de custos.

Ao que se sabe, houve toda uma histeria entre os maiores bilionários do mundo, preocupados em se tornarem pioneiros e grandes donos de terra em Marte.

Acontece que, quando um deles era de fato escolhido, acabava recusando a idéia toda. Acho que por uma espécie de medo e receio, pensando em toda a solidão que iam ter que passar e coisa e tal.

Aos poucos, vendo que ninguém mais aceitaria se aventurar pelo desconhecido da maior solidão que alguém poderia se sujeitar, a idéia foi sendo posta de lado.

Alguns, ainda, chegaram a sugerir que se enviasse prisioneiros condenados, mas o pessoal de Direitos Humanos caia matando a pau contra a proposta.

Assim foi indo, até que a coisa foi esquecida por completo.

Mas aí, quando o mundo todo já tinha superado a idéia, conta-se a história de um desconhecido voluntário

Diziam dele, o homem mais desgraçado de toda a face da terra. Em seu inalienável direito de busca da felicidade, seu planeta Terra não era mais suficiente.

Todos os preparativos foram feitos às pressas, com medo de que o bravo e enigmático Zé Ninguém desistisse da coisa toda.

De uma hora pra outra, então, se acendia em todas as pessoas do mundo a esperança de acompanhar a mais ousada investida colonizadora que os homens jamais haviam tentado.

Assim, ao contar de 15 horas dos relógios em Houston, os olhos do mundo assistiam à despedida do primeiro homem em busca de moradia extraterrestre.

E, nem um segundo mais tarde, os motores partiam com as ultimas mensagens de rádio que aquele homem se preocupou em enviar: “Sou o direito ultimo e máximo dessa sua aventura sem medidas, adeus, humanidade”.

Tão rápida quanto a curta mensagem, a central de comando recebeu um sinal de desligamento dos rádios comunicadores.

Nenhum contato jamais voltou a ser estabelecido com o misterioso astronauta.

Em poucos dias o mundo já havia se esquecido da coisa toda e retomado sua rotina.

Apesar de indicadores terem apontado para um êxito na rota, os controladores da agencia espacial deram o astronauta por morto e lhe ofereceram um funeral simbólico, ao qual alguns poucos curiosos compareceram. Nenhum deles, no entanto, era conhecido do misterioso astronauta.

Em sua lápide, ninguém sabia qual nome colocar, uma vez que com toda a excitação de colocar um homem em Marte, haviam todos se esquecido de perguntar-lhe seu nome.

Anos se passaram e ninguém voltou a falar sobre ele, nem, também, voltou-se a pensar em viajar pra Marte, ou qualquer outro planeta.

De tempos em tempos, algum maluco qualquer dizia-se profeta, médium, ou coisa do gênero, e sugeria que o astronauta estivesse vivo, fazendo contato com ele, pedindo ajuda e suprimentos.

Ao que se sabe, há, hoje, uma espaço-nave estacionada em lugar algum de Marte. Dentro dela, se supõe, jaz um corpo, levado até lá, inerte, por rota pré-programada.

Aqui, o mundo continua o mesmo que conheceu o desconhecido astronauta. As pessoas trabalham e se empenham em busca da felicidade e conquista pessoal. Laços afetivos se fazem em busca dessa felicidade, mas não duram e, tão logo se formam, já desaparecem, como um foguete rumo a Marte. Desaparecem num horizonte distante e indistinguível, para nunca mais voltar.

A felicidade, ao que se tem notícia, jaz longe de qualquer verdadeira intenção de ser conquistada, em lugar algum em Marte. Ainda assim, sem mais pensar nela, os homens continuam a se empenhar na busca de alguma coisa qualquer, coisa que já não sabem mais o que é.

De vez em quando, paro e encaro o céu à noite, gostaria de dizer que enxergo alguma espécie de movimento extraordinário ou coisa do tipo, mas não.

Nada.

13 novembro, 2010

Jackass!

"A estupidez é infinitamente mais fascinante que a inteligência; a inteligência tem seus limites, a estupidez não".
Claude Chabrol

Maravilhoso. Isso descreve Jackass.
Fui ontem à única sessão de Jackass 3D que passava no Unibanco, às 7 da noite.

Devo dizer, foi uma das poucas vezes que o 3D foi bem usado, num sentido que, não fosse as cenas de entrada e final, ele não tem qualquer peso sobre o filme.

É controverso prestigiar e comentar Jackass. Fazer um texto a respeito do filme é basicamente inútil, uma vez que todo mundo sabe como funciona e do que se trata.

Por isso, ao meu ver, basta que eu diga “é do caralho”.

Ainda assim vejo necessidade em exaltar a beleza que há no filme.

Jackass é quase uma filosofia. Filosofia do non-sense, num universo caótico.

Inspirado em Looney Tunes, Knoxville é a encarnação máxima de uma forma besta e fantástica de encarar a vida.

Em Jackass vemos a vida como vemos em Monty Python, apenas um pouco mais extremada.

Embaladas em trilha suave, as cenas depravadas se fazem num maniqueísmo de justaposição entre o embalo musical alegre e a imagem grotesca, assim há equilíbrio e simpatia.

Como sempre fora, Jackass é o grotesco em sua forma mais simpática.

E assim, como canta Dee Snider ao fim do filme, nos alegramos ao saber que “the kids are back”.

Nos alegramos ao saber que está de volta um belo grupo de palhaços dispostos a iluminar a mediocridade da vida cotidiana, nos arrancando da cara um sorriso debilóide e pervertido.

07 novembro, 2010

PT: A Regalia dos Incompetentes


Nos últimos dias, com todo o clima de eleição já passado, tenho me perguntado que fatores levaram à eleição de uma pessoa que, em comparação ao seu oponente, tem um currículo tão distintamente irrelevante.

Ao que pude perceber, vivemos num período da história humana onde valores e éticas sociais evaporam tão rapidamente quanto uma gota de água no asfalto quente. Como Karl Marx, mesmo, já apontou, o ambiente moderno é um lugar onde “tudo que é sólido desmancha no ar”.

Este efeito moderno de instabilidade moral me parece se dar com maior influência em nosso país e, assim, é fácil notar que uma subversão de valores é fator essencial para o momento político que vivemos.

Num país onde, reconhecidamente, há uma grande desigualdade social, a população optou por descartar valores que são pilares do desenvolvimento do mercado e da democracia e voltou-se, definitivamente, para o assistencialismo que não encaminha o país para um progresso concreto e bem planejado.

Neste cenário, nasce o discurso do assistencialismo barato que vulgariza e banaliza o verdadeiro espírito nobre do homem de bem – aquele que pretende seu patrimônio privado por meio de trabalho e suor –. Este discurso nada mais é do que uma repugnante ofensa ao legitimo caráter humano: o da livre iniciativa.

Numa equivocada re-elaboração de valores, fica tido como obsceno que alguém trabalhe e se empenhe numa jornada de constituição de benefício próprio. Ao que vejo, é tido como incorreto que a iniciativa privada e o livre mercado não operem como agentes de benesses sociais, sendo malvistos aqueles que constituam benefícios para si mesmos, ainda que não estejam fazendo mal a ninguém.

É nesta chave de valores deformados que se elege partido como o PT. Síntese política do assistencialismo em busca de votos e da bonificação aos incompetentes, no PT o trabalho e a competência não mais valem como fatores de eleição à cargos e não são páreo para os pobres desafortunados que merecem uma chance assistencialista.

É triste, tanto quanto nauseante, que um país caminhe rumo ao didatismo da falsa moralidade altruísta e execre valores que promovem o desenvolvimento e progresso humano.

É preciso entender que o verdadeiro desenvolvimento social não se concebe de assistencialismos imediatos e limitantes, que firmam uma população paupérrima em solo de “bolsas” férteis mas instáveis diante da perspectiva de mudança de governo, angariando, assim, votos para a perpetuação deste mesmo governo.

O verdadeiro desenvolvimento social se promove, sim, pela qualidade essencial da vida humana, a competição. Fator soberano na ordem do universo, a competitividade é aquilo que faz com que todos se empenhem em dar o melhor de si para se superar e se diferenciar do sujeito ao lado. Tão simples assim, o ambiente da livre competição instiga a criatividade e exalta virtudes particulares, de modo que a sociedade se desenvolve pelo trabalho de gente competente, uma vez que a incompetência não é paga.

O PT é o partido que opera justamente a antítese deste progresso humano, promovendo regalias aos incompetentes.

Tradicionalmente, somos o país da pena. Temos dózinha do menos afortunado e precisamos passar a mão na cabeça dos pobres coitados.

É cultural esse nosso impulso em mimar, como pais inexperientes mimam o filho que quer de tudo. Como o filho mimado, as gerações futuras deste país tendem a crescer mais preguiçosas e caminhar sem qualquer objetivo ou fundamento de educação, realmente, bem estruturado, por sobre este solo de moral equivocada e ética compadecida com o pobre coitado do vizinho.

É nesta chave de operação que toda uma população é capaz de relevar atos criminosos, fazendo-se cúmplice dos mais sórdidos atos políticos, uma vez que a perspectiva maior, de um país imediatamente fraterno e igualitário apaga qualquer projeto de controle absoluto do estado.

Como a história por si só já mostra, é fato que uma sociedade que se pauta por valores tão deformados, quanto estes do nosso atual Brasil, não demora muito para entrar em crise.

Quando isso acontecer, tão rápido quanto uma gota de água que evapora no asfalto quente, tenho por certo, irá evaporar este governo do absurdo.

26 outubro, 2010

Cinéfilos: (A)mostra de Emoções


Ontem tive a oportunidade de reviver um aspecto muito interessante da Mostra Internacional de Cinema, sua capacidade de gerar os mais diferentes sentimentos numa questão de horas.

Correndo pela cidade, de um cinema para o outro, de uma sala para a outra, filme após filme, percebi como estava exausto ao fim do dia.

Exaustão não tão significante pela maratona, quanto pelo turbilhão de emoções que o corpo tem que administrar ao longo do dia.

Do ritmo distintamente contemplativo do cinema norueguês à balburdia italiana registrada freneticamente, passei ontem por três experiências completamente diferentes.

Se no final de semana de estréia do evento comecei num ritmo lentíssimo, assistindo a apenas um filme, ontem eu finalmente entrei nos eixos. Comecei pela manhã com Factótum, do norueguês Bent Hamer, passei a tarde com A Primeira Coisa Bela – aposta italiana no Oscar – e terminei com Uma Casa Para o Natal, também de Hamer.

Quando pela manhã entrei na sala de exibição, alguns minutos após o começo do filme, tão imediatamente me sentei, senti a presença de Bukowski dominar o lugar.

Factótum, adaptação homônima do romance do velho safado, é um filme de excelente gosto. Bent Hamer, mais que diretor, é maestro de uma sinfonia simples, despretensiosa e belíssima em seu caráter de distanciamento observativo.

Matt Dillon, como Hank Chinaski, é tão pesado e presente na tela que chega a ser incrível o modo como, o que considerei a melhor atuação de sua carreira, tenha passado desapercebido por todo o meio crítico.

O filme é uma calma e sóbria homenagem ao velho beberrão – filósofo da desgraça medíocre –.

Saí dele com o espírito rasgado e renovado ao mesmo tempo. A alma e essência de Bukowski, exaladas a cada quadro contemplativo da obra, cospe no espectador o escárnio humano mas também lhe estende a altiveza com que Bukowski aceita e digere o caos fortuito das apostas cotidianas.

Não tive muito tempo pra apreciar o vigor pós-filme, no entanto, pois tão logo saí da exibição já tive que correr pra chegar a tempo no italiano A Primeira Coisa Bela.

Poupo comentários sobre esse filme. Esquecível, apenas. Uma boa história, bons personagens, um ritmo um pouco acelerado demais. É evidente a referencia aos bons filmes italianos, em especial ao cinema de Scola. Ainda assim, confuso e incomodo até certo ponto. Por outro lado, o trabalho de uma mãe vulgar e um filho inconformado é do grau de excelência na representação de Micaela Ramazzotti e Giacomo Bibbiani. Vale a pena por este mérito.

Posso, tão obviamente, dizer que saí leve do filme, sem muito o que pensar, sem muito o que dizer. (Uma pena, poderia ter aproveitado mais os efeitos de Factótum).

Do fim desta sessão, pude tirar um tempo pra respirar, o que me arrependo, no sentido de ter perdido a oportunidade de ver o tão bem falado Abel.

À noite foi a vez de Uma Casa Para o Natal, filme que, pra minha surpresa, era também dirigido por Hamer.

Foi interessante assistir e perceber a qualidade técnica do diretor e seu modo de filmar; calmo e receptivo. Receptivo num sentido de apreciar a ação e aceitar tudo o que é registrado, conferindo, assim, naturalidade à mise en scène e gerando, por fim, um trabalho de representação orgânico.

Ter visto à Uma Casa Para o Natal me serviu de comparativo com Factótum, e assim pude notar essas qualidades essenciais do diretor.

Seguindo essas mesmas qualidades apontadas, o filme retrata as vésperas de Natal de uma série de personagens que vivem numa mesma cidade. O rigoroso inverno norueguês dá lugar ao calor e conforto humano, como o próprio diretor apontou em debate – novamente inesperado – após a sessão.

Abrindo-se com uma cena onde a figura humana é por total diminuída e banalizada, o diretor transcorre por lares e ruas onde histórias distintas dessa mesma cidade se cruzam até o ponto final onde o afeto humano – fraterno – toma seu lugar de volta.

Enfim, me detive por demais aos filme de Hamer. Acontece que a construção de suas histórias e personagens é sublime. Toda uma gama de pessoas distintas recebe e comunica emoções tão próprias quanto a cultura de uma pequena cidade em lugar qualquer da Noruega.

O Natal do filme de Hamer é como a mostra de cinema, um período para se viver os mais variados humores.

Ao fim do dia, sou um condensado de emoções.

15 setembro, 2010

Soderbergh


Soderbergh encanta. Seu cinema remete àquele dos anos 40, dos anos 50. Bom cinema. Seus closes e movimentos de câmera rápidos procuram o interessante e refletem o despertar do olhar curioso. O olhar de um publico encantado com o novo.

Ah, mas este é Soderbergh da trilogia de Onze Homens e Um Segredo, onde a câmera procura a ação com o mesmo interesse que as subjetivas de Hitchcock invadem a vida alheia em Janela Indiscreta.

Já na obra de duas partes Che a experiência é quase documental. Cortes secos garantem um ritmo realista. E a câmera é soberba em seu êxito com a proximidade dos personagens, mesmo entre movimentos rápidos e bruscos.

E se em O Segredo de Berlim prevalece a sobriedade e o mistério noir, em O (Des)Informante o personagem de Matt Damon é a comicidade que faz o filme tão confuso quanto a perturbada mente de seu protagonista.

Diretor de obra vasta – se relacionada a sua idade – Steven Sodenbergh mantém um ritmo frenético na realização de filmes.

Numa média de 2 filmes por ano, o que me atrai é sua versatilidade. Há muito de seu cinema que me incomoda, muita coisa que, fosse outro diretor, eu o repudiaria. O que me desperta o interesse e a simpatia é justamente o fato de não ater-se a padrões estéticos e narrativos. Ou seja, seu estilo é uma variante constante.

Ainda assim, seu cinema é de fácil reconhecimento.

Se por um lado, Soderbergh procura sempre o novo, novas histórias e novas maneiras de contá-las, cada um de seus filmes carrega sempre traços identificáveis em filmes anteriores.

Como que deixando uma trilha de migalhas de pão, enquanto caminha adiante com sua obra, Soderbergh sempre lança mão de alguns pequenos elementos que se fazem reconhecíveis numa espécie de marca registrada.

A começar, todos os seus filmes carregam uma qualidade autoral. São produções de baixo orçamento, sempre inventivas e corajosas. Basta perceber a ousadia do projeto Che, ainda que o resultado tedioso seja um atentado ao pudor.

Mais que isso, o charme da trilogia Onze Homens e Um Segredo é desvirtuado em um humor seco na pretensa elegância de Mark Withacre, o embasbacado protagonista de O (Des)Informante.

Este ultimo filme, ainda, gosto de apontar, apesar de fraquíssimo, é excelente na empatia entre o personagem Mark Withacre e o público. Se alguma coisa vale a pena no filme são suas cômicas e desconexas divagações.

Como acontece com Woody Allen, muitos filmes de Soderbergh não passam do água com açúcar. Talvez seja esse o preço de se manter um ritmo tão frenético de realização.

Para Soderbergh, no entanto, apesar de uma obra eclética, muito diferente de Allen, as obras-primas são mais raras.

Claro, seus filmes são impecáveis e agradáveis de assistir, com uma exceção ou outra, mas não há nada que vá a fundo em questões existenciais, éticas, morais, enfim, humanas. Quando muito, esbarra em pequenos conflitos do caráter humano apenas para alavancar uma comédia ou um suspense.

Talvez em Erin Brockovich se constate mais coragem nesse sentido, mas a verdade é que Soderbergh não é um diretor de obras antológicas, tanto quanto é um empreendedor de filmes esquecíveis.

Apesar disso, é um bom realizador, agradável aos olhos e gentil com o espírito.

11 setembro, 2010

A arte dos tolos e dos românticos




Há quanto tempo não sou surpreendido por um filme.

Cinema, como tudo na vida, vai ficando banal. Apesar desse revés, me é impossível passar uma semana sem por os pés na sala de projeção.

Sala escura, luz do projetor, imagem na tela. Ir ao cinema é mais que um evento, é um ritual.

Nos dias de hoje, com uma escassa produção de filmes bons, o sujeito que mantém um ritmo semanal de visita às salas de cinema é, de duas uma:

ou um romântico irremediável, ou um completo tolo.

O romântico (que não deixa de ser, também, um tolo) é cego e vai aos cinemas pela paixão, pelo amor e pela dedicação aos filmes.

Assiste de Karate Kid à A Origem, passando por Nosso Lar. Nunca sem a esperança de experimentar uma verdadeira obra-prima. A alma do romântico é devota à experiência cinematográfica e, se vê um filme ruim, se sente traído mas não perde a fé.

Por outro lado, o sujeito que vai religiosamente ao cinema, não pela paixão, mas pela mera possibilidade de dar a sorte de ver algo bom, é um completo tolo. Se duas exceções anuais me provarem o contrario, terá sido muito.

A regra é que quase todos os filmes que o tolo vá assistir sejam ruins, bem como o romântico, com a diferença que o segundo vê filmes com olhos apaixonados, o que traz, sempre, uma maior decepção.

O tolo, ante um filme ruim, de outro modo, dá de ombros. Para ele, assistir um filme é como um passeio semanal pelo parque. É geralmente a mesma coisa, monótono, sem graça, e cansativo, com a pequena chance de que fortuitamente um pássaro gigante pouse na sua frente e dance La Bamba.

Dedicar-se ao cinema é uma tarefa difícil e pouco recompensadora. Pro romântico é um relacionamento que não vale a pena. O tolo, bem o tolo está pouco se lixando, vai ao cinema por ir.

Entregar-se verdadeiramente à experiência é raro, uma vez que as decepções são incontáveis. Por isso, é uma pena quando os verdadeiros amantes da arte deixam passar desapercebido grandes obras, talvez pelo cansaço ao qual a relação os submete.

Sou um romântico, por isso sei o motivo de continuarmos indo tão fielmente aos cinemas. Vamos por que é ótimo esperar a sessão começar. É interessante saber que por algumas horas você e algumas outras 30 ou 40 pessoas desconhecidas vão partilhar de uma experiência, vão viver alguma coisa juntos. Vamos porque, na pior das hipóteses, damos algumas risadas, choramos por um cachorro morto, ou levamos alguns sustos.

Mas, acima de tudo, ainda acima de nossa fé tola, vamos porque, de fato, uma vez ou outra, experimentamos verdadeiras jóias.

30 agosto, 2010

Na Cama e no Teatro com Hitchcock


Telecine Cult é refugio para os saudosos de plantão na madrugada.

Não tenho idade pra saudosismo, ainda assim, quando ligo a televisão no 65, apenas para descobrir que um Hitchcock está no ar, é como se tivesse redescoberto uma memória de muitos anos atrás.

Janela Indiscreta. Pra mim, o máximo de Hitchcock.

Há algo de muito aconchegante em Janela Indiscreta. Algo que funciona como um convite ao espectador.

Aqui, James Stewart, diferente de outros filmes do mestre, nos é apresentado fragilizado.

Preso à uma cadeira de rodas, Jeff (Stewart) vive um fotógrafo aventureiro que tem seus instintos limitados ao claustrofóbico espaço de seu apartamento.

Perturbado pela monotonia e incapacitado de ir atrás de qualquer emoção, Jeff, através de sua janela, passa a observar a vida de seus vizinhos. Tão convidativa e interessante é a vida alheia, ele logo se vê mergulhado numa obsessão.

Por meio de movimentos de câmera tão suaves ao passear por cenários que parecem o nosso próprio quintal de casa, o filme todo, em sua construção e ambiente, nos atrai num ritmo familiar e somos feitos voyeur numa investida tão suave que é impossível reconhecer o momento em que passamos a compartilhar da obsessão de Jeff.

Gradualmente, o fotógrafo aventureiro entra num processo de observação compulsiva, numa vontade cega de tentar solucionar o desaparecimento de uma de suas vizinhas.

O que começara com tediosas tardes vendo a vida passar à janela, logo põe o personagem numa aflita jornada em busca de respostas.

Ai , Hitchcock, com maestria, manipula os limites do voyeurismo e dialoga com a própria natureza de seus filmes.

Reconhecido por criar suspense e tensão em suas cenas, com base no jogo de planos em subjetiva e contra-planos em objetiva ( ou vice-versa), Hitchcock faz de Janela Indiscreta um filme que argumenta sobre essa técnica.

Sustentado basicamente por essa premissa técnica, o filme engloba o espectador nessa lógica e nos torna sedentos por respostas, ao ponto de compartilharmos da compulsiva investigação de Jeff.

Lá pelas tantas, porem, Hitchcock repete algo que faz na maioria de suas produções, que é deixar o espectador sabendo mais do que os personagens: numa cena chave, Jeff acaba pegando no sono, apenas para não ver algo que inocentaria aquele que lhe é o maior suspeito do desaparecimento de sua vizinha.

É incrível como o que, em algum filme ordinário, seria um desfecho simplório, num Hitchcock, se torna elemento de mais suspense, dúvidas e tensão.

Ao, aparentemente, inocentar o suspeito, Hitchcock nos joga contra o personagem de Stewart que, ao acordar, continua certo de que aquele é o assassino. Nessa reviravolta, não nos vemos indo contra Jeff, tão somente, mas somos desapontados por vermos nossas expectativas indo por água abaixo uma vez que estavam todas depositadas na certeza de que o assassino (caso houvesse algum) fosse quem nós esperássemos.

Mais que isso, Hitchcock subverte nossas esperanças em um ato selvagem e brutal.

Como que postando um espelho à nossa frente, ele reflete nossa decepção ao percebermos que uma tragédia sobre a qual já apontávamos culpados se prova inexistente. Desse modo, somos feitos seres que precisam provar sua bondade e grandiosidade apenas quando deparados com a sordidez humana.

No entanto, sem entrar em grandes discussões filosóficas sobre a alma humana, uma vez que seu objetivo é sempre uma boa qualidade narrativa e técnica, Hitchcock apenas passa de leve por essa questão e segue em frente com o filme à sua catarse primorosa.

Num desfecho de cenas inesquecíveis, a exemplo das subjetivas onde Jeff cega o suspeito com os flashes de sua câmera, Janela Indiscreta se fecha tão suave como se abre.

Assim, com uma tão rápida saudade nos despedimos.


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Fui assistir ontem à peça 39 Degraus.

Sucesso nos palcos da Broadway e de West End, a adaptação brasileira do texto de John Buchan é um fiasco.

Não sei dizer se o fracasso da peça se deve ao original ou à adaptação, de um jeito ou de outro, a peça se apóia em piadas escrachadas e atuações histriônicas, como que em uma apresentação infantil.

O ator principal, Dan Stulbach surpreende ao encenar uma peça de tão baixo nível, mas surpreende mais ainda ao rebaixar sua atuação ao próprio nível da peça.

Com piadas que fazem referencia forçada a peça, como falas que remetem ao fato de que os atores coadjuvantes interpretam diversos personagens, o texto adaptado não se preocupa em um maior apuro qualitativo, legando todo seu pretenso sucesso à essas mesmas piadas fraquíssimas e, pior ainda, à uma fantástica montagem técnica e visual que tem todo seu mérito desperdiçado por uma trama que não se preocupa em dar respostas finais.

Como já disse, não sei se o problema da trama é com o texto original ou com o adaptado. Se tivesse que apostar, apostaria na segunda opção, uma vez que o texto já foi levado às telas por Hitchcock.

Ainda, quanto às montagens visuais, há um jogo de sombras belíssimo e por demais interessante, talvez, ainda, o único momento da peça em que eu tenha de fato me envolvido. Esse mesmo jogo de sombra, que faz clara referencia aos filmes do mestre, consegue criar um clima muito bacana e envolvente, talvez por ser o único momento em que se desvencilhe da necessidade dos atores esboçarem suas terríveis performances.

Acima de qualquer outra coisa, no entanto, o que mais revolta é o fato de que não há uma menor preocupação da peça em resolver os mistérios que levanta. Ao final é como se o espectador tivesse assistido à um circo sem qualquer sentido narrativo e dramático.

Circo esse de uma hora e quarenta minutos, acompanhados atentamente por olhos vidrados no relógio.

05 julho, 2010

Kerouac

A experiência humana é sonho casual das almas que habitam o deserto, delírio coletivo da mente que ferve ao sol. O abrigo, efeito contra a insolação, é evitado ao máximo.

O traçado tão aleatório e visceral, desses todos que se perdem desesperadamente, ao mínimo esforço de se encontrar em meio ao deserto, é síntese máxima do delírio conjunto.

O acaso marca pegadas irregulares na areia que grita a morte da razão enquanto bebe o sangue dos desesperados.

Tempestades de areia afugentam a teimosia dos esperançosos que planejam a fuga a passos marcados.

Ainda, tão quente quanto fervem as rochas, a terra, a cabeça e a mente, ferve o asfalto, no distante horizonte. E como corre o vermelho do cadilac. Indistinguível e fugaz ponto de inspiração àqueles bilhões que assistem a esperança cruzar-lhes a vista no alto som de sua passagem.

Jack Kerouac acelera seu motor, e como voa a válvula de escape da humanidade – fuga do delírio coletivo –. A 120 por hora, sua passagem é anunciada pelo canto choroso do coiote que ruma ao abrigo.

Neal Cassidy, vulgo Moriarty, no banco de trás.

Indistinguível das tantas outras, a dama da vez lhe oferece os peitos. O cigarro voa janela a fora, oferecido a alguma raposa curiosa. Enfim, as mãos livres tocam a fonte da sede suja, enquanto a boca reclama o rápido gole do vistoso leite depravado.

Kerouac. Seu diário de bordo é o olhar rápido pelos transeuntes da noite, enquanto a escuridão encobre os últimos raios do sol, e a lua se impõe ao alto das distintas montanhas.

On the Road, diz seu titulo, é retrato do voyeur que experimenta, alucinado, o delírio sóbrio a que se submete o coletivo, no vazio de sua solidão.

Kerouac é a veloz mão do datilografo inspirado por Cassidy. Kerouac, inspirado pelo forte cheiro de cachaça que emana poro a poro do bêbado à sarjeta, delira imagens nostálgicas de dias vivazes sobre o limpo papel branco.

Impressão literária e eterna da fugaz experiência passada. Bruta na pele da gente ordinária, e suave na lembrança do romântico baderneiro.

E o viajante solitário segue em frente.

01 julho, 2010

C.

Sentada à janela do café em que costumavam se encontrar, C. mira o horizonte. Seus olhos correm da rua para o relógio de parede e, novamente, para a rua.

Há dois anos, mais ou menos, aquele já era seu local de encontro. A fumaça das xícaras quentes, naquele abrigo dos ventos de outono, era pretexto sedutor para o encontro.

Amantes clandestinos.

Sempre houve entre eles, ainda que jamais anunciado, um amor clandestino.

Talvez a excitação do mistério, ou a sedução que há no romance proibido, os tenha posto na situação do eterno vai e vem, tem e não tem.

Jogos de amor, indicados a dois. Ainda assim, insistiam em se envolver no romance barato com outros. Talvez, fosse esse o barato, o de fugir da rotina programada com a terceira alma indesejada, e reencontrar, nos subterrâneos do passado, o parceiro clandestino.

Suas pernas irrequietas pedem à boca, a constante sede do café. Logo, a xícara é vazia.

C. ajeita os cabelos, a mão se ergue – mais uma xícara, por favor –.

A sede dos lábios, no entanto, é outra, é a sede do coração. Ela sabe disso.

Um gole no café quente cobre seu rosto de fumaça. De longe, W. acha graça.

Sentado a uma mesa de fundo, ele à assiste já há algum tempo.

Não faz por mal, deixá-la à espera. Vê, apenas, prazer em estudá-la. Lembrar de seus gestos e manias. Há algum tempo já não se vêem.

C. é só receio e ansiedade. Mexe na bolsa, procura o telefone.

De longe, W. transforma em palavras suas caras e bocas. – Ele não vai vir, vou embora – o rosto relaxa – talvez ele esteja no transito, vou ligar pra ver – celular na mão, o celular volta pra bolsa – não, não vou ligar, vou dar mais um tempo –.

Um ultimo gole na xícara, ela arruma suas coisas – eu não posso fazer isso, eu estou bem, estou bem sem ele –. Se levanta e caminha até a porta.

Já, a um passo da saída, um toque gentil no braço lhe pede um ultimo olhar para trás.

C. é só brilho, o rosto, finalmente, descontraído, um primeiro sorriso, antes de se virar.

Enfim, W. – most of us, need the eggs –.

30 junho, 2010

Butch Cassidy and the Sundance Kid


O coronel brada – Fuego! –.

Disparos.

Mais uma vez – Fuego! –.

Mais disparos.

Uma ultima vez, antes que sua voz seja encoberta pela trilha – Fuego! –.

Com os últimos disparos, Newman e Redford se imobilizam num ultimo frame. Um frame que se faz fotografia do fugaz momento de suas mortes. Retrato fugaz das eternas e imortais figuras de Butch Cassidy e Sundance Kid.

É duas da manhã e da escuridão do meu quarto ligo a tevê. Estou com sorte o suficiente para ouvir, logo ao primeiro momento, Raindrops keep falling on my head.

Entre a suave trilha, e tiroteios agressivos, a luz projetada da televisão começa a embalar meu sono.

Pra mim, sempre fora tão agradável dormir ao embalo de clássicos do cinema. As vozes, a musica, as cenas e os diálogos, me trazem calma e lembranças agradáveis, como se fossem memórias minhas, aquelas cenas jamais vividas. Assim, durmo o sonho dos saudosos.

De um modo ou de outro, Butch Cassidy é um filme de rara oportunidade na televisão, dormir enquanto está no ar é quase um pecado.

Mantenho-me acordado até o final, até a cena que imortaliza ambos Butch e Sundance, Paul e Robert.

Há todo um clima e uma construção dramática que garantem o esplendor do filme, bem como seu lugar entre as grandes obras do cinema. Mas há, também, um algo a mais. Um detalhe final, sem o qual o filme não seria o que é.

A ultima cena.

Duma conversa ingênua, sem saber que lhes espera todo um exercito, Butch e Sundance saem de seu abrigo pra enfrentar, o que pensam ser, alguns dois ou três homens. Logo, uma seqüência de tiros confronta a ingenuidade daqueles dois que mal algum queriam ao mundo, mas apenas bem à si próprios. A ultima imagem, no entanto, é a de dois rostos confiantes nos sonhos com a distante Austrália, e não a de dois rostos surpresos pela realidade.

Assim se fazem imortais, dois sonhadores.

Já é quase quatro horas, e com essa imagem na cabeça, pego no sono.

Sonho com duas figuras distintas – um exímio atirador que tem medo de água, e um romântico fora da lei –. Eles roubam um banco, em algum país onde não se fale “mexicano”.

Seus rostos expressam confiança ingênua, como se contassem um com o outro e nada mais. A eternidade é deles, pelo menos até o momento em que gotas de chuva continuarem a cair-lhes sobre a cabeça. Até lá, serão os eternos Butch Cassidy e Sundance Kid.

22 junho, 2010

Away we go


Votos daqueles que nunca se casaram, nem nunca se casarão, ditos na eternidade de um fugaz momento da madrugada. Ah, sim, sobre uma cama elástica.

É, de certa forma, essa imagem, essa cena, que define o filme do diretor Sam Mendes, Away we go.

Grávidos, o casal Burt e Verona se vê desamparado quando os pais dele anunciam que vão morar na Bélgica.

Sem ter quem os guie pela nova fase da vida, os dois viajam os Estados Unidos – e Montreal – em busca de conhecidos que já tenham alguma experiência em termos de criar uma família.

De Phoenix, onde encontram uma antiga chefe de Verona conduzindo a família da forma mais preguiçosa possível – dada à evidente exaustão do casal –, à Madison, onde encontram-se com um casal “hippie”compenetrado em criar os filhos à melhor – e mais natural – maneira possível, Burt e Verona acabam, por fim, encontrando, em Montreal, o lugar perfeito para criar a filha que vai nascer.

Lá, eles reencontram um casal de amigos da faculdade, pais de uns 4 filhos adotivos, uma vez que Munch, a mãe, já abortou 5 bebês.

Empolgados em criar a família ao lado do casal de amigos, a noticia de que Munch não consegue ter filhos parece preceder uma instabilidade no local, algo que o torna inóspito, dado a tristeza da situação.

Uma ligação, do irmão de Burt, os leva de volta aos EUA, para Miami desta vez.

Abandonado pela esposa, da noite para o dia, o irmão de Burt se depara com a difícil tarefa de contar para a filha que a mãe a abandonou.

O fato levanta uma questão para o casal: por que alguns que tem o que outros tanto querem, não valorizam?

Conduzido muito sobriamente, Away we go é um filme firme, sobre a eterna instabilidade da vida.

Se em Um Sonho Possível, o sonho americano é a representação máxima da tragédia moderna, levada a cabo por uma vida frustrada, naquilo em que se pretende que seja real e não um enlatado “mais do mesmo”, e em Beleza Americana, esse mesmo sonho vira material para um retrato sombrio e irônico de uma sociedade tão fragmentada e incapaz de compreender à si mesma, uma vez que tão mediada por imagens e idolatria, em Away we go, as figuras desta mesma sociedade são tratadas com compaixão, talvez devido um sentimento de nostalgia.

Seja como for, Away we go é símbolo desta vida, cada vez mais intoleravelmente incompreensível. Retrato do trauma que nos afeta do momento em que nascemos.

O trauma concebido da dramaticidade de se viver num lugar tão inóspito à vida humana, uma vez que não oferece qualquer resposta significativa ao sentido de nossa existência.

Por assim ser, Burt e Verona, desesperados ao perceber que não tem ajuda de ninguém para criar a filha da maneira menos traumatizante possível, ao procurar ajuda de conhecidos, país a fora, percebe que o desespero existencial – aquele desespero do “e o que faremos agora?” – não é uma questão de gênero ou idade, mas, sim, uma questão, eternamente, humana.

O que o filme faz, seu propósito, é oferecer um conforto. Ao retratar medos, anseios e frustrações, como em todos seus outros filmes, Sam Mendes expõe a dramaticidade da vida como algo essencial dela própria, confortando todas as almas solitárias, como irmãs.

Por fim, Burt e Verona, ao buscarem ajuda, acabam encontrando casais tão perdidos quanto eles, de modo que não se vêem mais sozinhos no mundo, mas encontram este conforto que o diretor propõe. Acontece, apenas, que eles não encontram conforto nos amigos ou parentes, mas, sim, pela primeira vez, um no outro, quando finalmente acham um LAR.

Ainda que “lar” não seja um lugar de respostas e certezas, ainda que seja só mais um espaço de instabilidade e imprevisibilidade, é lá que Burt e Verona, possivelmente, terão um local de conforto na certeza do companheirismo. Conforto enquanto duas almas juntas, como dois grãos de areia no indistinguível turbilhão de questões e medos pessoais, do qual esta sociedade – universo – é tão permeada.

11 maio, 2010

A Estrada

Quando o gênero humano se descolore.

Em Onde Os Fracos Não Tem Vez, o xerife Ed Tom Bell, personagem de Tommy Lee Jones, ao fim do filme, conta à sua mulher sobre um sonho que teve na noite anterior.

Seu pai, no sonho, caminhava por um vazio imenso, um lugar desértico. Coberto por uma manta, ele carregava uma tocha, ia acender uma fogueira em algum lugar no meio daquela vastidão fria e escura.

A chama que o pai do xerife Ed Tom carrega é, na realidade, uma fagulha.

Uma fagulha de esperança em meio aos fortes ventos de um deserto violento e desolador.

Cormac McCarthy é um romancista americano. Prefiro proclamá-lo ensaísta.

Autor de No Country For Old Men, seu livro A Estrada é a adaptação cinematográfica da vez.

Não li nenhum de seus livros, minha base são os filmes inspirados neles. Pelo que se relacionam, declaro McCarthy ensaísta de uma longa e única obra.

No Country e A Estrada são, essencialmente, o mesmo filme.

O sonho do xerife Ed Tom pode ser lido como toda a narrativa de A Estrada.

Um ensaio pós-apocalíptico. A Estrada é um retrato simbólico de caráter concreto e fenomenal.

O simbolismo está presente nesse cenário pós-apocalíptico e na relação entre o pai e o filho – protagonistas –.

O que há de concreto e fenomenal advém, em contrapartida, do próprio plano simbólico. Ambos, pai e filho, representam o homem com a tocha do sonho em No Country For Old Men.

Por mais surreal que pareça, eles são personagens concretos, personagens reais. Personagens que matem firme sua humanidade e com isso carregam a flama magnânima do grandioso caráter humano.

O pai, pesar de seus defeitos, padece. Apesar deles, mantém viva em sua memória uma única certeza – mostrar à seu filho o caminho correto: o da humanidade sobre tudo –. Esse caminho exige esforço hercúleo, uma vez que inserido num universo onde a sobrevivência é pretendida acima de qualquer valor.

Podemos dizer que A Estrada é o ensaio sobre a violência de No Country levado às ultimas conseqüências. Senão isso, uma visão simbólica sobre a narrativa deste.

Aqueles que pretendem, com A Estrada, ver um filme sobre o fim do mundo alucinante e megalomaníaco, ao melhor estilo Roland Emmerich, irão sair decepcionados. A Estrada, do diretor John Hilcoat, é um filme sutil, concebido com outros propósitos, que não um filme de catástrofes grandiosas.

A grandiosidade está em lidar com a catástrofe humana, a catástrofe do progresso.

A perspectiva é de ilustrar, sem rodeios, a desumanidade implícita no progresso social – leia-se progresso do capital – acima de tudo. Mais que isso, é retratar a falibilidade à que todos nossos valores e certezas estão sujeitos, sem que nem nos demos conta disso.

Tomamos por certo tantas coisas. Somos crédulos de nossa generosidade, benevolência e altruísmo acima de tudo, bem como de nossa moral ética judaico-cristã. Não nos damos conta, no entanto que há algo dentro de nós muito mais poderoso e devastador, a natureza de nosso ser. Nossa raiz humana capaz de erradicar qualquer valor.

Mirar uma arma na cabeça de seu filho, na diegése do filme, é enveredar uma luta contra essa natureza humana devastadora e enaltecer uma possível sobreposição da moral afetiva e racional à brutalidade inerente do caos e descaso social.

Propriamente, esse caos e descaso não se concebem de um pós 2012 ou coisa do tipo. São, de fato, engendrados de um processo de caráter inexorável e distópico que teve início no primeiro momento em que o primeiro homem se percebe capaz de manipular o mundo a sua volta. O primeiro cérebro a compreender seu ambiente e afins como ferramenta, deu o tiro de largada para esse processo.

Por fim, A Estrada é um romance, um filme ou um ensaio, como queira, de coragem e virtude.

Cormac McCarthy se arrisca em contemplar, sem floreios, a triste posição em que nos encontramos nós, seres humanos, apenas por sê-lo. Não perdendo de vista o olhar nostálgico sobre essa situação e depositando suas esperanças sempre em alguém por aí, algum pai ou filho qualquer.

Algum pai ou filho qualquer, bravos o suficiente para carregar uma chama exaustiva.

A mensagem? Esperar que a chama vingue.

09 maio, 2010

Whatever Works


É bom ver Woody Allen. É bom vê-lo em sua essência e espírito.

Fui ao cinema ontem. Não estava muito entusiasmado com o filme. Whatever Works.

Sabia se tratar de um Woody Allen original – de sua boa época –. Mas, ainda assim, seus últimos filmes me tiraram o entusiasmo em continuar acompanhando suas produções.

A verdade, no entanto, é que quando entrei no filme, um pouquinho atrasado, me deparei logo com os créditos iniciais pela metade.

Da forma clássica como são os credito de seus filmes, embalado por uma música deliciosa.

O entusiasmo me atingiu novamente, enfim, logo ao primeiro contanto com aquele humor e clima clássico de seus filmes.

Na cena inicial vemos Woody Allen representado por Larry David.

O clássico hipocondríaco, neurótico, e misantropo gênio.

Um pouco grosseiro, na carcaça de David, mas ainda assim, essencialmente Allen. Tão fácil de curtir e se divertir, apenas um pouco mais rude.

É bom ver Woody Allen dar uma respirada e tirar um tempo dessa “nova fase”.

É bom vê-lo de volta a si mesmo.

Allen, aqui se faz, novamente, presente nas telas.

Em Wathever Works vemos suas impressões, sua personalidade e seu rosto – ainda que, como já dito, seja Larry David quem vista a carapuça –.

Talvez, dessa “respirada” entre um filme e outro da nova fase, lhe falte fôlego suficiente, aos 74 anos, para nos agraciar também com sua atuação, o que sem dúvida desfavorece o filme.

Ainda assim, David dá conta do recado e faz a função de suportar o filme muito bem.

Seguindo o arquétipo clássico dos personagens representados e escritos por Allen, David sustenta o filme usando os personagens ao seu redor como escada para suas neuroses e críticas.

O misantropo manco – dada uma frustrada tentativa de suicídio – encontra numa jovem moça do sul, que lhe pede abrigo, um ouvido companheiro que agüenta todas as reclamações do neurótico. A ingênua e boa moça vai logo se admirando pelo velho e procurando se parecer com ele.

Ao desenvolver da narrativa, uma série de personagens vai aparecendo na trama e sempre batendo à porta de Boris (Larry David). Cada um desses personagens, assim como o próprio Boris e a jovem sulista, Melody, são caricatos.

Figuras simbólicas. Caricaturas extremas, de regras de conduta e morais sociais das mais diversas crenças – sejam religiosas ou éticas –.

Woody Allen, faz aqui, de uma certa maneira o que faz em Desconstruindo Harry.

Uma auto-analise, apenas mais tolerante e sensível em relação a si e ao mundo.

Faço essa leitura, pois cada uma das personagens está presa a normas éticas que seguem cegamente, e por isso não se deixam viver.

Ao passo que vão se libertando dessas abstratas e convencionais normas, cada personagem vai encontrando uma razão mais digna e verdadeira de viver.

Woody Allen dá um tempo da função de embaixador da cultura européia e contempla sua vida. Exatamente como faz em Desconstruindo Harry.

Dessa vez, no entanto, mais maduro, ele se compreende feliz e bem ajustado.

Se em Desconstruindo Harry, Allen é juiz-penitente, autocrítico e moralmente guiado, em Whatever Works, Allen compreende que o auto-julgamento leva à desgraça pessoal, sustentada por invenções e críticas falseáveis propostas pela sociedade.

Se há alguns anos atrás ele percebia sua vida pessoal e suas relações na ordem da depravação, hoje ele percebe a depravação como uma convenção boba e sem sentido que atrasa sua felicidade e saúde mental.

É isso que Boris, ou Larry David, ou o desconstruído Harry, ou um arrependido e finalmente redimido, Woody Allen, representa.

Whatever Works, diz o titulo, é uma proposta de vida.

Pode parecer auto-ajuda. Mas não vale menos por isso.

É Woody Allen dizendo – Ei, o mundo é aquilo que você concebe, se quiser ser feliz, seja, se quiser transar com uma cabra, bem... whatever works –.

O final do longa é um clichê. Ponho assim, pois o próprio personagem Boris previne para isso, lá pelo meio do filme: “Eu sei que disse que não gosto de clichês, mas as vezes eles funcionam”.

Whatever Works. O clichê funciona.

Ao fim, cada personagem se encontra em estado de plenitude, livre de suas crenças, alguns sendo excêntricos e outros normais, ou não, afinal, tudo é uma questão de como se concebe esse mundo de regras surreais.

Se você abandonar suas crenças bobas e éticas, concebidas de um acaso quase insuportavelmente aleatório, você vai ver que tudo pode dar certo.

E para Woody Allen, tudo dá certo.

23 abril, 2010

A alegoria do 3D!

Vejo um grupo. Dez pessoas. Cantam.

O reverberar – em uníssono – encanta aqueles que passam por perto.

Logo, de dez, são quinze vozes.

O chamado ao ritmo contagia pessoas e mais pessoas.

Quando vejo, todo mundo, até aonde minha vista alcança, canta.

Aqueles que não sabem a letra seguem o coro e lá pela terceira repetição da estrofe, já tem as palavras saltando de suas bocas.

Palavras miméticas.

Da primeira voz a entoar o canto, se inspira o ultimo seguidor da melodia.

Agora, à minha frente, se apresenta um bloco formal, comungam da música e se fazem indivíduos desindividualizados. Um único ser essencial.

A melodia me atrai.

Mas me lembro das prevenções e advertências. Dos ancestrais mais sábios.

Então me sento e assisto.

Espírito único e inquieto, ainda que quieto – pois mantido assim, pela opressão harmoniosa da melodia desgostosa de mim –.

Sei do perigo da banda. A banda que toca e atrai vozes ao canto. Sei de seu poder anestésico. Tomo cuidado e tampo os ouvidos. Uma vez que se atinge os sentidos com tal força, é quase impossível voltar a ouvir com clareza o mundo real.

Escrevo essa bobagem acima pra elucidar de um jeito mais bacana o que sinto em relação a grande porcaria – que muito me assusta – chamada 3D.

Fui ver Alice no País das Maravilhas! Em IMAX 3D! Uau! Dá pra ficar mais potente que isso?

Realmente não.

O 3D se revela como grande ferramenta de manipulação. Assim como a música ilustrada acima, o 3D é artifício apelativo aos sentidos.

Sei que o cinema é essencialmente esse mesmo apelo, mas quando puro e bem resolvido por gente com propósitos honestos, há um algo a mais, além da manipulação pela manipulação, ou pelo retorno monetário.

O cinema honesto a que me refiro, é aquele que proponha questões válidas a respeito de qualquer coisa e que fomente uma inquietação do espírito – sabe? –, aquele cinema que, ao ferir os sentidos, atinja também o plano racional e provoque uma reação, mostrando que veio para um propósito digno.

Não acredito na bobagem de que o sentidos, e tudo que apele à eles, seja de natureza subversiva.

A Sociedade do Espetáculo me parece uma radicalização extrema de um princípio que é, talvez, nosso único meio de conhecimento, o princípio empírico.

Meu problema reside na questão das coisas que apelam em demasia aos sentidos. Esse apelo que anestesia o raciocínio.

O cinema 3D leva o espectador a um gozo visual suis generis.

Esse peculiar atrativo – de maior impacto ainda, quando em IMAX – nocauteia o senso crítico, uma vez que inertes perante a exposição exaustiva dos sentidos à imagens onipotentes, onipresentes e todos os onis por ai.

A história, a trama, a construção narrativa, enfim, é tudo mero elemento de suporte.

O GRANDE EVENTO é o 3D! É à isso que veio o povo. Para o espetáculo.

Que o 3D exista e cumpra sua função, a de instrumento de entretenimento, não vejo problema algum – ta, vejo, mas vou deixar passar –.

Meu problema é quando este, “soma” do Admirável Cinema Novo, se torna hegemônico. Meu problema é quando o apelo aos sentidos ultrapassa a demanda de produção de conteúdo e fomenta uma padronização nos meios de produção audiovisual, transformando tudo em 3D.

E o grande perigo do 3D é justamente aquilo que vi em Alice no País das Maravilhas, ou em Avatar – que seja –.

Um descuido em construir uma narrativa pertinente, de qualidade.

Não precisamos só de filmes políticos ou de caráter filosófico ou seja lá o que for, mas quando na proposta do mero entretenimento, que se faça com qualidade.

Se na literatura ficássemos entre Nietzsche e Freud somente, os romances estariam na merda. E o povo em depressão.

Mas nem por isso, romances tem de ser pobres, alias, em seus primórdios, atraiam a população justamente por suas qualidades narrativas e pela capacidade de construir metáforas e provocar o exercício crítico emergente de histórias – aparentemente – meramente ilustrativas, mas que por suas qualidades de associação – na leitura mais aprofundada – abordavam temas sérios.

Assim como na literatura seja com Dostoievski, Tolstoi, Gorki, Flaubert ou Machado de Assis, o cinema precisa de seus Truffauts, Hitchcocks, Von Triers e Kubricks, deixando viver, em seu canto, os Camerons, os Burtons e os Tarantinos.

Sem que esses últimos tomem conta da indústria.

O alto apelo estético empobrece a mente, e o senso crítico é afetado, aí o espírito padece. E os picaretas da indústria cultural lucram muito, elaborando pouco. Pois uma vez que consolidado o 3D, a tecnologia irá se aprimorar e pouco exigirá dos produtores, no mesmo instante que o consumidor pouco exigirá em termos narrativos.

Quando falei mal de Avatar, para um fã do filme, cheguei ao cúmulo de ouvir: Claro, você não viu em 3D! –

Certamente que não vi. Se tivesse visto teria me sentido do mesmo modo que me senti ao final da sessão de Alice. Deliciado com o visual do filme. Cantando a música da banda. Sendo parte do coro. Amei Alice. Amei sua arte, sua fotografia, sua iluminação, suas atuações.

Quer saber, que filme belo! Em IMAX então, UAU!