26 janeiro, 2010

O Homem Urso



Bom, após algum tempo sem postar, eu retomo o blog.

Assisti ao filme “O Homem Urso”, do diretor Werner Herzog. O documentário, do cineasta alemão, narra a historia de Timothy Treadwell, um homem que dedicou os últimos 13 anos de sua vida a visitar anualmente um parque nacional no Alasca, habitado por ursos, até o dia de sua morte por um velho urso, em 2003.

Aqui, Herzog tem, na figura principal de seu filme, uma personagem que, em vida, validou um discurso sobre a qualidade e postura do homem pós-moderno, de modo que o diretor se vale das gravações documentais feitas por Timothy, em meio à selvagem vida nas reservas florestais do Alasca, para formular seu próprio discurso à respeito da natureza do homem.

Ao que se percebe pela obra conjunta do diretor, o que concerne uma discussão a respeito da mentalidade humana o interessa muito, vide que de uma maneira ou de outra, seus filmes sempre tratam desse assunto, sendo, talvez, o mais clássico deles, a produção de 1974, “O Enigma de Kaspar Hauser”. No personagem de Kaspar Hauser, Herzog encontra o mesmo potencial narrativo que encontra em Timothy Treadwell, com a mesma essência argumentativa, ainda que, diferente de “O Homem Urso”, na obra de 1974 ele realize uma obra de ficção a partir de fatos relatados.

É com excelência que, Herzog, seleciona as gravações de Timothy, intercalando-as com entrevistas de pessoas próximas ao personagem, desde seus pais até o homem que deixou à ele e à sua namorada no campo do Alasca onde viriam a morrer atacados por um urso. As entrevistas, bem como as gravações feitas por Treadwell, vão, ao decorrer do filme, delineando traços da personalidade de Timothy, o que leva o espectador a entender a razão de ter escolhido viver daquela maneira.

Treadwell, como o apresentam seus pais, era, tipicamente, um comum garoto norte-americano, que aos poucos, ao que a narrativa de Herzog faz entender, por fatores, aparentemente, internos e externos à sua persona, fora desenvolvendo distúrbios psicológicos. Alguns de seus colegas, ainda, em entrevistas à Herzog discorrem sobre como ele enfrentara problemas de relacionamentos durante a sua juventude. Alinhados todos os pontos fornecidos, entendemos que Treadwell é aquela pessoa que sofreu a brutalidade do mundo pós-moderno e, involuntariamente, rompeu com essa sociedade. Sua válvula de escape, então, foi a natureza, ele encontrou na natureza selvagem um mundo de coisas harmônicas e perfeitas, onde todos podem viver felizes e despreocupados. O único problema, na verdade, como a própria retórica do filme conclui, é que Treadwell não encontrou na natureza um lugar harmônico e perfeito, ele se iludiu com tal lugar, criando uma natureza própria e fantástica fora da realidade das coisas. Em algumas das gravações feitas por Timothy, e selecionadas por Herzog justamente à apontar a ilusão de seu personagem, vemos ele confrontado com a real brutalidade da natureza selvagem, quando, por exemplo, encontra um crânio de um bebê urso que serviu de comida para seus pais, ou em outro momento, quando encontra uma pata de filhote e comenta que alguns ursos machos matam o filhote para que a fêmea possa acasalar novamente. Nesses momentos, a realidade ilusória de Timothy é quebrada e vemos uma figura desesperada florescer por meio de gestos e atitudes exageradas e tristes, Timothy chora, xinga, grita e arranja uma desculpa para amaldiçoar o homem, culpando a humanidade por todo o mal causado à natureza. O que Timothy não percebe é que a brutalidade e atrocidade são próprias da natureza, e que o progresso do homem, através da razão, quando não há empecilhos, é um distanciamento dessa ferocidade selvagem. Ainda assim, apesar de todo nosso progresso, a estrutura de nossa sociedade atual, ainda hoje, é a concorrência, e que é, senão, um reflexo da natureza selvagem ainda muito concreto em nós, mas que, acredito, é apenas um processo da humanidade a ser superado, bem como as guerras, e aqui, cito uma frase de Ettore Scola em seu filme “Casanova e a Revolução”: “Podemos viver em tempos de paz agora, mas a guerra pertence aos genes do homem”.

O que filme diz com essa frase é que é natural do homem lutar por seus objetivos, e que o caos e a brutalidade são próprios de nós, mas penso que um equilíbrio há de ser adquirido sempre, pois ainda que a natureza seja um lugar de presa e predador, ela mantém um caos harmônico, que tende sempre ao equilíbrio final. Ainda mais, acredito que com o progresso sócio-intelectual do homem, alcançaremos uma grande distancia dessa natureza primitiva, presente em nós.

Bom, o campo da discussão proposta por Herzog começa a ficar muito amplo, e retorno à figura de Treadwell.

Treadwell é o símbolo da exceção, à regra do progresso humano, ele viu na sociedade mercantil avançada, tão somente, as qualidades primitivas do homem e entendeu que fosse única ao homem essa brutalidade competitiva, e se iludiu, acreditando que na natureza não encontraria nada disso, senão beleza, quando na verdade, se temos, ainda hoje, qualidades primitivas é tão somente por nosso, ainda presente, vinculo com essas raízes selvagens. Como Herzog diz, Treadwell cruzou barreiras invisíveis e acreditou que poderia viver em meio à vida selvagem.

Se fossemos fazer um roteiro da vida de Treadwell, desde seu inicio, e baseado nos fatos que Herzog nos apresenta, pensaria termos dois grandes pontos de virada: o primeiro quando ele entende a sociedade em suas qualidades primitivas e se choca à romper com essa sociedade, encontrando na natureza selvagem sua idealização de mundo, e o segundo quando percebe na natureza, aos poucos, suas verdadeiras qualidades brutais, sendo que dessa vez não sobrevive.

Ainda assim, com todos esses conflitos, não há como não admirar e se identificar com a figura de Timothy Treadwell, no sentido em que estamos todos, sempre, muito pertos de romper com nosso próprio universo, frente à brutalidade de nossa sociedade, ainda hoje, tão fortemente mediada por nossos instintos primitivos. É nesse aspecto, ainda, que figura a imensa competência, e brilhantismo narrativo, de Herzog, ao propor a nós uma alusão a nossos próprios anseios diários. Herzog capturou imagens da vida de um homem e fortaleceu o discurso de Treadwell a respeito da natureza do homem, ainda que Treadwell tenha discorrido ingenuamente sobre esse aspecto, tão somente por meio de suas ações, cabendo ao diretor o mérito de ver na vida de seu personagem o potencial para validar seu próprio discurso:

“Treadwell se foi, a discussão a respeito de ele estar certo ou errado desaparece numa distante névoa. O que sobra são suas gravações. E o por que de assistirmos à vida animal em sua felicidade de ser. Em sua graça e ferocidade. Um pensamento, então, se torna mais claro: não é um olhar na natureza selvagem, mas sim um olhar dentro de nós, um olhar a respeito de nossa natureza. E pra mim, isso dá sentido à sua vida e à sua morte.”

Enfim, um filme imperdível.

Nota: 10

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