28 março, 2010

Um Homem Sério

“When the truth is found to be lies, all the joy within him dies.” – Jefferson Airplane.

 

Somos homens de bem. Somos homens por um bem maior.

Servimos ao mundo de forma coesa ao propósito final de servir à uma ordem idealizada.

Lawrence Gopnik é coerente na sua vida social – profissional e familiar – e sua devoção apoteótica é para com o judaísmo. Lawrence é – por suas próprias palavras – um homem sério.

Acontece que, apesar de toda devoção e da forma coerente como leva sua vida, Lawrence passa a ser objeto de uma serie de desgraças que sobre ele recaem.

De formação judaica e professor de exatas num colegial, Lawrence recorre à religião para ajuda – ante problemas matrimoniais – e à lógica para entender porque o mundo insiste em desabar sobre ele.

O que Lawrence não enxerga é ser vitima de uma tragédia maior que ele. Ele é vitima de uma tragédia grega. A tragédia do acaso e da predeterminação.

A tragédia de humor negro de Joel e Ethan Coen.

Lawrence está fadado à desgraça por não perceber isso. Por não perceber que não há recompensa em tentar tirar sentido da vida. Lawrence é a figura de qualquer ser que diante de problemas, ao recorrer aos dogmas religiosos ou raciocínios lógicos, irá, inevitavelmente, recair na desgraça.

Um Homem Sério é um filme de olhar cético. Em seu prólogo, os irmãos Coen convidam o espectador justamente a participar desse mundo permeado de questões, onde, enveredado em verdades absolutas, um sujeito será levado à falência de suas crenças.

Se és devoto e tua devoção não lhe é recompensada mas, pelo contrario, sobre ti um mal se abate, que farás?

Lawrence Gopnik é amaldiçoado, do inicio ao fim do filme. Sendo sua vida mediada por certezas fundamentais no âmbito lógico e crente, ao ser testado pelo acaso, de tal modo, acaba finalmente por romper com a moral ética.

É basicamente um retrato desse rompimento que os Coen pretendem.

Num tom contemplativo – clássico de suas obras –, eles assistem à queda em desgraça desse homem.

Jogam sobre ele todo tipo de maldição.

Brincam de Deus com um bonequinho de Jó em mãos.

Diferente da passagem bíblica no entanto. O que os Coen pretendem testar não é a fé de Lawrence, mas os limites dessa fé e o quão atrelada ela está as ações morais e à ética social.

É como canta Jefferson Airplane durante todo o filme – aos ouvidos do filho de Lawrence, Danny –: “When the truth is found to be lies, all the joy within him dies”.

Quando a religião e a razão lógica não respondem às questões de Lawrence, nem tampouco o ajudam à combater ou entender as desgraças que lhe caem sobre a cabeça – justo sobre a cabeça dele, “um homem sério” –, Lawrence não rompe só com elas, mas também com a ética social.

Pratica, por fim, a corrupção e simboliza a degradação dos valores conquistados pela humanidade – se postos de tal maneira atrelados à coisas tao relativas quanto a fé –.

Ai ele se torna objeto da tragédia grega dos irmãos Coen. O filme deixa transparecer essa qualidade num sentido em que as conseqüências finais estão predeterminadas independentes às ações do protagonista.

Tendo Lawrence, uma vida tão cheia de certezas dadas pela fé e pela razão lógica, quando prejudicado pelo acaso desconhecido – típico de um olhar cético –, não haverá Lawrence habilidade para lidar com esse acaso, pois recorrera aos seus valores fundamentais – religião e lógica – e os questionará, fazendo com que entrem em crise e por fim acabará rompendo não só com eles mas também com os princípios sócias de ética de conduta.

Ai a tragédia grega predetermina – por pressupor os valores de Lawrence – um fim do qual ele não conseguirá escapar. As conseqüências, no entanto, iram ferir preceitos bíblicos e deixarão em aberto uma questão – Lawrence foi castigado por ter se corrompido? –.

Se Lawrence foi castigado ou não, não cabe a nós perguntar, ou recorreríamos no mesmo erro de Lawrence, o de tentar tirar sentido em tudo. E os Coen nos previnem pra essa questão já no prólogo, como citei acima.

O que de importante há nessa ruptura de Lawrence e naquilo que – relacionado a essa ruptura – fere os preceitos bíblicos é a desgraça que irá recair nos ombros do filho de Lawrence – Danny – devido os erros do pai.

É, também, num paralelo de cenas entre pai e filho, que o filme vai delineando como o comportamento de Lawrence vai influenciando a vida do filho.

A tal altura do filme, Danny caminha por uma sala e passa pela obra O Sacrifício de Isaac – que é o ponto auge dessa relação entre pai e filho –.

O que essa referencia bíblica levanta não é – repito – uma justiça divina e a existência ou não dela.

Mas reflete como o rompimento do pai ante os valores morais irá afetar o filho, ou no caso se Abraão não confiasse em Deus e fosse desobediente, teria sido castigado. Lawrence é o oposto de Abraão, ele rompe com seus valores ao ser testado. Os Coen o testam à esse ponto pra mostrar como certezas absolutas, quando postas em questão, levam ao rompimento moral que, no caso recai sobre as futuras gerações – a geração de Danny  é a de Woodstock –.

No final das contas, Lawrence é uma espécie de Édipo com uma antagônica paciência de Jó.

23 março, 2010

Les rêves de Gondry


Submerso. Esse é o sujeito dos filmes de Michel Gondry.

Um homem submerso na realidade pós-moderna. Um homem frágil e impotente.

Que força terá um homem pra revolucionar o mundo imponente da mercadoria? Nenhuma. Impotente é esse homem.

A revolução contra o mundo, então, tem de ser particular. A superação do homem haverá de ser onírica e terá de ocorrer num âmbito livre das amarras sociais.

O sonho – retrato forte e recorrente nos filmes de Gondry - é o plano do possível distanciamento do homem perante o mundo.

Aquele que não vence na vida, sonha.

Vencer na vida – nessa sociedade do capital – é ter seu talento reconhecido e seu esforço recompensado.

Mas e quando o talento e o esforço estão presentes e não são nem reconhecidos, nem tampouco recompensados? Que faz um homem com a consciência de ter sido injustiçado? Que faz Stéphane Miroux – o artista de “The Science of Sleep” –  quando o mundo parece não compreender sua arte?

Sonha.

Algumas escolas filosóficas do século XX estudam a sociedade moderna como um lugar fragmentado e mediado pela lógica do mercado, estando todas as relações humanas sujeitas às vontades desse sistema.

O homem perdeu sua identidade e seu mundo virou um lugar fragmentado. A validade do papel do sujeito é pleiteada sob a única perspectiva de consumidor.

E as marcas de identidade do homem não se fazem mais por suas características pessoais, mas pelos atributos de mercado que consome.

O amor e as relações humanas nos filmes de Gondry, por esses pressupostos expostos acima, se dão sempre no âmbito do sonho, numa perspectiva de se verem livres à falência dos sentimentos quando submetidos a lógica desse mundo real. A licença poética que Gondry tira para trabalhar o sentimento humano, revela um olhar triste e piedoso para o homem que não conhece mais esses sentimentos, senão no plano da idealização.

Um mundo onde tudo é representação e nada é puro.

Que função tem um artista dentro desse sistema?

Representar um mundo que por si só já é representação? Inútil!

Ou esse artista se insere na lógica mercantil e tem sua arte transformada em mercadoria, ou esse artista rompe com o mundo e entra em decadência. O personagem principal do filme “The Science of Sleep” fica o tempo todo balançando em cima do muro, entre essas duas opções.

Roland Barthes – sociólogo e critico literário – diz em seu texto “A Aula” que a literatura tem um caráter utópico, pois pretende ter qualidades do real ao mesmo tempo em que sabe ser impossível alcançá-las.

O papel do artista era do mesmo nível que o da literatura descrita por Barthes. Pretendia tanto alcançar o real que acabou sendo cooptado pela realidade mercantil devido suas qualidades representativas e de forte persuasão.

O real e o imaginário e, o concreto e o abstrato, tornaram-se de tal maneira tao intrínsecos, ao propósito de servir ao sistema mercantil, que uma distinção entre um e outro já não é mais possível.

Isso se reflete não só nas obras de Gondry, mas também nas de seus parceiros Spike Jonze e Charlie Kaufman, de tal modo que poderia dizer que os três comungam de uma experiência, em termos de narrativa cinematográfica, análoga à vida.

Ai reside uma metalinguagem no cinema deles, num sentido em que seus filmes representam em grande parte essa confusão entre o real e o representado de tal maneira que o próprio filme se confunde com o real de suas vidas.

Jonze, Gondry e Kaufman são ao mesmo tempo sujeito e objeto.

Seus filmes são confusos pois são representações do particular de cada um deles, mas que, dentro da homogeneidade padronizada da sociedade mercantil, encontram um ponto comum de essência que eleva o particular à uma genérica representação do homem moderno, perdido e desolado ante o mundo do capital.

O sujeito do filme é ao mesmo tempo o diretor e o espectador, representado por uma particularidade, por um fragmento de mundo.

Tanto no cinema de Gondry quanto no cinema de Kaufman e Jonze, o que encontramos é um olhar nostálgico para o passado e entristecido para o presente. É como se em algum momento de suas vidas, eles tivessem experimentado a verdadeira essência do ser. É como se tivessem conhecido a real qualidade dos sentimentos. Até o momento em que caem no oceano capitalista e submergem nesse mundo, sofrendo um lapso nas relações humanas e perdendo contato com a essência verdadeira de ser.

O cinema de Gondry e de seus companheiros é o cinema do homem pós-moderno, que nada nesse oceano, exausto, sem fôlego e sem qualquer perspectiva de terra firme.

Ainda assim, mesmo que no plano onírico, um fragmento de amor e fraternidade sempre se apresenta como uma luz no fim do túnel.

17 março, 2010

A culpabilidade dissimulada do povo brasileiro!

           Maquiavel, Italo-brasileiro, é Pinóquio.  

 

Quando se põe em questão os problemas sociais de nosso país a resposta dada é sempre um ato de legar aos políticos a culpa por tudo que há de errado com nosso organismo social interno.

No entanto esse legado de culpa que genericamente o setor político carrega em suas costas é fruto de uma tradição política corrompida moralmente. A repetição de atos corruptos por parte dos administradores desse setor da sociedade cobriu com uma manta falaciosa as verdadeiras raízes corrompidas de nossa sociedade.

Os meios de comunicação – que visam sempre um feedback (audiência) consistente de seu publico – apelam para o agrado popular. Outorgar à população a verdadeira face da corrupção não venderia.  Isso porque a face corrupta é o povo brasileiro.

A mídia no entanto, não arrisca mostrar a precariedade moral enraizada na formação do cidadão brasileiro, uma vez que feriria seu feedback – ninguém quer ouvir falar mal de si próprio –. O que faz então é noticiar ações corruptas por parte dos políticos, sob o pretexto de denuncia. Esse modo de agir – como já disse – mascara o problema real. Nesse sentido, grande parte da culpa cai sobre a mídia também, por propagar a falácia que melhor serve ao mercado.

Quando alguma responsabilidade - de fato - cai sobre o homem comum, essa é uma responsabilidade de ordem menor. Acredito que melhor do que discorrer sobre o que seria essa responsabilidade de ordem menor, mais fácil será expor a frase símbolo desse ato. - "O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem-caráter, nem dos sem-ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons". -

Tal enunciação é puro refugio ideológico daqueles que percebem a verdadeira culpa de seus atos e dissimulam a verdadeira natureza corrompida inerente em si sob a aprovação de ninguém menos que  Martin Luther King.

Tomado esse presuposto, diz-se dos “bons” que eles tem a culpa de eleger e se calar diante da corrupção política. Mas esse é o limite da culpa enunciada do povo. Nem a mídia, nem a população, nem tampouco alguns “ditos” intelectuais levantam as reais causas que levam à eleição deturpada de nossos representantes.

A verdade é que a formação do cidadão brasileiro é deficiente.

O que me trouxe a escrita desse texto foi algo que li na internet – numa comunidade do Orkut, mais incrivel por ser uma comunidade do George Orwell –.

O titulo do tópico era “ Vou roubar um livro...”. Entrei e li. Se tratava de um rapaz contando que ia roubar um livro – A revolução dos bichos –  da biblioteca de sua escola.

O resguardo ético do sujeito ante tal ação – criminosa –  era o pressuposto final da coisa toda.  Argumentava o rapaz que o estado do livro era deplorável e que havia ainda duas outras copias na biblioteca que ninguém jamais retirava. É o famoso tiro maquiavélico – os fins justificam os meios –.

Uma suspensão de juízo de valor – nos dias de hoje – é o tipo de coisa de que nossa sociedade não precisa. Independe o propósito final das coisas, o que está em voga é a discussão sobre o princípio da ação e nesse caso é um principio corrompido. O que é mais irônico aqui nesse caso é que Orwell próprio criticava ações deturpadas que enveredavam-se sob o argumento de supostas melhoras finais. Enfim...

O que mais me impressionou foi ver o apoio de grande parte das pessoas que comentaram. Coisa do tipo – vai la, rouba mesmo –. Li uns 20 comentários do tipo. É engraçado como o contexto afeta o julgamento. Isso é próprio do povo brasileiro.

Roubar é roubar, independente do que. Fosse um político o pessoal tava matando a pau. O principio, no entanto, é o mesmo.

Uma conclusão vem, finalmente, com tudo isso. O grande problema de nossa sociedade é a má índole de nosso povo que, dissimulado, titula isso como “jeitinho brasileiro”.

A verdade, por fim, é que o povo brasileiro é um povo preguiçoso e safado e que lança mão de argumentos contra os administradores do país – que operam também na mesma ordem de rompimento moral – outorgando à eles toda a responsabilidade por essa decadência.

A falência moral de nossa sociedade – enfim –  cai de forma equivocada sobre a cabeça da população como um ato culposo. O julgamento, no entanto, deveria ser na ordem do dolo.

 

10 março, 2010

Bukowski


A referencia da América suja. A verdadeira face da América. O velho safado. Descrito, na década de 70 por Sartre, como “o maior poeta vivo”.

Tantas são as nomeações. Ainda assim, por qualquer uma que se enuncie sua figura, sabemos de quem se trata. O velho Buk. Bukowski.

Há muito estou pra escrever a respeito dele. O grande problema é que é uma figura tão conhecida e alguem que já foi tão explorado em textos de analise, em referencias, e em apologias que é quase impossível conseguir divagar sobre o tão conhecido sem cair no comum.

Mas as qualidades estão na forma de enunciação – correto ? – .

Bem como diria Bukowski: foda-se, vou escrever assim mesmo!

 –  essa não! já to caindo no lugar comum dos textos bukowskianos; a repetição exaustiva de palavrões  –

Seja como for.

Se Bukowski carrega tantas classificações, se seu nome evoca um turbilhão infindável de clichês estereotipados, se a leitura de seus livros é abarrotada de pré-conceitos por aqueles que ainda não o leram, entre outras tantas coisas, é porque uma coisa é certa: algo de bom há.

No sentido pragmático de que há de ser bom pra causar efeito sei que alguns frankfurtianos discordariam de mim – ignoro –.

Pai azarão e piedoso do vernáculo marginal, Bukowski reclama os direitos do sub-mundo.

Suas palavras não são criticas. Seus relatos não são ideológicos. Seus livros não são panfletagens política.

O reclamar de direitos feito por Bukowski é fruto de um amargo humor. Sabor terrível que a vida lhe impôs. A America foi o pano de fundo e pagou o pato.

Ele não reclama seus direitos à uma ordem vigente concreta e especifica. Ele nem faz esse reclame de forma explicita.

As maldições que Bukowski prega é à quem bem servir. É à fortuna maquiavélica que tão mal lhe serviu.

Ou talvez lhe falte virtú.  

De qualquer jeito, essa figura que tem tanto desprezo por tudo e por todos inclusive, num lugar mais profundo, por si mesmo, não age assim de má fé. Bukowski próprio dizia – tinha um desprezo pelo miserável especifico mas simpatia pela figura do miserável. –

Ele é afetado empaticamente pelo trabalhador explorado, pela velha prostituta e pelo bêbado desempregado. Ai ele simpatiza – com as figuras dessa gente –. Seu verdadeiro problema é conhecer a pessoa em si. Ai vem o desprezo.

É ambíguo e difícil de compreender. Ainda assim, fácil. Sim, é ambíguo.

A escrita é dilacerada. Digo num sentido poético. O que ele faz é poesia. Ele se vale da escrita formal e a dilacera. Mexe nas entranhas das palavras. Cria seu texto de corpo e alma. É humano. É verdadeiro.

São tantas observações e suposições possíveis em cima de Bukowski que não posso deixar de abrir esse parênteses e reconhecer a parcela de presunção que ha nisso tudo. Sem falar na margem de equívocos. Mas é como leio Bukowski e pronto.

Bukowski dizia saber escrever apenas ao som de musica clássica. Ouço Bowie enquanto escrevo sobre ele.

Ai me pergunto – sua mensagem se perdeu em algum lugar no meio do caminho ? – .

Novamente, os frankfurtianos diriam que sim –virou industria –.

Dos rumos que tomou, não tenho duvidas que Bukowski tenha virado mercadoria, mas acredito que suas palavras ainda refletem efeito e continuam retratando, de forma concreta e sensível ao leitor, a decadência do homem moderno, independente de ser marginalizado ou não.

Num sentido mais amplo, acho que o que Bukowski retrata é justamente as teorias frankfurtianas num alicerce empírico. Ai já é outra divagação que talvez não venha ao caso agora.

Seja como for, é o cara.

Podia apontar o contexto de vida de Bukowski e, subseqüente, as razoes de sua escrita. Podia, ainda, para aqueles que não o conhecem, falar de algumas de suas obras. Mas não. Escrevo mais para lembrar à mim mesmo o que penso de Bukowski. Ou talvez para formalizar esse pensamento.

Penso nas obras que li dele e em que níveis se assemelham e em que níveis se distinguem. Essencialmente trazem a mesma abordagem de mundo.

Um olhar perdido e sem esperanças frente a vida. Mas ha em sua obra um amadurecer.  Conforme o passar dos anos, a atitude de revolta vai sendo posta de lado e a rebelião contra o homem vai dando lugar à uma nostalgia inimaginável ante a lembrança de seus dias de gloria – por gloria me refiro a beber, arrumar brigas e ser demitido de uma serie de empregos –.

Bukowski amadurece. Lá pelas tantas – já na escrita de “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio” ou “Pulp” – vemos uma maior tolerância com o mundo e com as pessoas.

Podem ver isso como o perder do espírito jovial. Eu vejo como nobreza.

09 março, 2010

Sigur Rós


Há uma banda islandesa chamada Sigur Rós. Escuto ao filme deles – Heima – enquanto  escrevo esse texto.

De certa forma fora o filme que me levou à inspiração de escrever.

Recomendo, a propósito que assistam ao filme. É um retrato muito bonito da Islândia sob o olhar desse grupo de pessoas – a banda –.

Mais especificamente, o filme mostra imagens primorosas do país ao som de musicas da banda intercaladas por depoimentos de seus integrantes.

Enfim, o que me traz aqui é a premissa da coisa toda. A premissa que enxergo no filme.

Eles pretendem, tão somente, falar sobre aquilo que conhecem. O filme mostra shows que a banda faz por diversos lugares da Islândia.

Em pleno inverno (realmente) rigoroso, fazem shows em campos abertos e multidões se atraem pra assisti-los. Adultos, jovens, crianças, bebês de colo e idosos. Famílias e grupos de amigos. Gente de todo o tipo é posta lado a lado ao som tão especifico da banda.

A harmonia desse retrato – das pessoas à musica – é uma representação da Islândia. A cultura do pais é muito viva no filme.

Os instrumentos são muito relativos a cultura local. Num dado momento os integrantes – sempre sob uma fotografia magnífica – saem pelos campos recolhendo pedaços de madeira e pedra e criam instrumentos a partir deles. Por fim levam os instrumentos a uma caverna de gelo e fazem um show ali.

Enxergo nisso tudo um discurso implícito sobre como certas coisas no mundo     – nesse caso a musica – são comum a todos os homens, adaptando-se somente as situações.

Numa cena se vê um lindo campo vazio, onde aos poucos vai se juntando um numero considerável de pessoas de todos os tipos. Todos muito agasalhados vão, pouco a pouco, tomando assento na grama até a entrada da banda. Em diversos aspectos essa imagem remete à lembrança de Woodstock.

É sobre esse discurso implícito que falo. A qualidade transcendental de alguns fenômenos. A musica sendo um deles. Independente da cultura referente, a musica alcança os mesmos efeitos onde quer que seja.

Ainda, a simplicidade do que é mostrado, a humildade de se ater ao seu próprio conhecimento de mundo, me lembra em muito ao documentário do João Moreira Salles – Santiago –.

Num discurso mais aberto e referente justamente às qualidades e atribuições de um filme documental, Salles discorre sobre sua perspectiva do que deve ser um documentário.

E a partir de um conhecimento próprio e um entender, enunciadamente, particular do que se trata um documentário, o diretor discorre, de forma condizente com o discurso do filme, sobre como um documentário é algo que se faz de dentro pra fora.

Quando diz de dentro pra fora Salles determina que o documentário deve ser a apresentação de um espectro de mundo, particular ao referente narrador, apresentado a partir do ponto de vista desse referente, propondo assim um conhecimento àqueles que estão de fora desse mundo.

É essa qualidade que enxergo no filme do Sigur Rós. O retrato de um espectro que desconheço. O enunciar de um mundo conhecido por quem o enuncia. Conhecemos, então, uma parte da Islândia. Recortes éticos – e por éticos me refiro aos modos e costumes – são apresentados sob um caráter de simplicidade.

Em poucas palavras e a grosso modo, acho que é isso que falta nas representações de mundo hoje em dia. Acho que se sobrepõe muito as presunções de querer abraçar à todas as coisas sob uma verdade universal. E que falta muito, pessoas afim de falar sobre a pequena sabedoria e entendimento que tem dentro do nosso grande espectro universal.

Acho mais.

Acho ainda que requer muita coragem pra fazer um discurso simples e – num bom sentido – humilde, como o que vejo nesse filme.

03 março, 2010

Avant Dr.Jekyll, avant!


My Way. Tudo que ouvia era aquela música.

A cada passo que dava ela ficava mais alta. Meu coração batia. Temente à incerteza do próximo passo.

Após algum tempo seguindo o som da música, finalmente me deparei com aquela grande porta.

Sabia que assim que a abrisse, de algum jeito, eu não seria mais a mesma pessoa. Jamais.

Cogitei, por alguns segundos sair daquele lugar. Pra falar a verdade, sair dali era só o que eu queria. Num gesto involuntário, um de meus pés chegou, ainda, a dar um passo de recuo.

Mas não podia abandonar a coisa toda ali. Não quando finalmente estava tão perto daquilo que vinha perseguindo há anos. Sabia o que tinha que ser feito. E ainda que com um grande embrulho no estomago, eu fiz.

Abri aquela porta. Uma porta imensa, do tamanho de três grandes homens. A dificuldade para abri-la, por causa do seu peso, de uma certa maneira me pareceu até apropriada. Após tantos anos de exaustão naquele caso, o ato final não poderia deixar por menos.

Dei, finalmente, meu primeiro passo dentro daquele ambiente. O odor que num primeiro instante percorreu meus pulmões fora o suficiente para nocautear o resto de meus sentidos e impedir uma instantânea percepção do resto do ambiente.

Finalmente abri meus olhos e numa rápida passada de olhar por aquela sala vi das mais terríveis atrocidades que um ser é capaz de cometer. Mas não foi isso o que me prendeu a atenção.

Seus feitos, afinal de contas, eu já conhecia de longa data. Por quantas vezes já havia entrado em cenas de seus crimes segundos após ele os ter cometido.

Nada daquilo me era surpreendente. A surpresa estava em finalmente ver seu rosto. Finalmente encontrá-lo pessoalmente.

Ainda que estivesse na expectativa de encará-lo. Ainda que quisesse olhar em seus olhos para poder dizer – Vejam não é o olhar de um homem, é o olhar do demônio –. Ainda que por anos essas fossem as únicas coisas que eu realmente desejasse, não foi seu rosto a coisa que primeiro me chamou atenção.

Por algum motivo, ao vê-lo sentado no meio da sala. Em meio a todo aquele cenário. A primeira coisa que me chamou a atenção foi sua mão.

Seu braço caído pra fora daquela cadeira era a única coisa que se discriminava àquela sua altitude altiva.

Pernas cruzadas, postura ereta, cabeça erguida. Tudo em perfeita harmonia com sua condição de noção de mundo. Seu ser superior. No entanto, naquele quadro que ele havia montado, a pintura de seu braço esquerdo caído para fora da cadeira foi o que me chamou a atenção. Percorri meu olhar do começo de seu ombro até a manga de seu paletó. E dali, detive meus olhos em sua mão. Ele segurava uma lâmina.

Dela, num ritmo lento, escorria um humor vermelho. Escorria como se tivesse a eternidade pra continuar escorrendo.

Foi a primeira coisa que vi.

Meu olhar contemplava aquela lâmina.

Eu nada mais fazia. Sabia por um relance de olhar, logo ao entrar, todo o resto de coisas terríveis que ali jaziam. Coisas que teriam sua devida atenção, em seu devido tempo.

Mas ali, naquele momento, tudo que via era aquela lâmina gotejante.

Ainda não havia sequer sacado minha arma, um ato de imprudência, devo dizer, ainda que ele não tivesse atentando contra mim.

E se tivesse atentado não sei dizer se teria reagido, tal era meu estado.

Minha prudência, como detetive, como policial, ou até mesmo como humano num ato de sobrevivência, sumira frente a visão daquela lâmina. Gotejante.

Ainda que a única luz existente fosse a da lua, que vinha através das enormes vidraças, sua imagem, sentada naquela cadeira, era nítida.

Finalmente sai de meu estado de transe e encarei seu rosto.

Cabelo penteado. Cara limpa.

A luz do luar que incidia sobre seu rosto, no entanto, não era suficiente para uma distinção mais clara de sua fisionomia.

Pude ver o cigarro que repousava no canto de sua boca. A fumaça que exalava, trazia consigo um riso que me faz tremer da cabeça aos pés até hoje.

Um calafrio me percorreu o corpo todo enquanto a fumaça do cigarro se dispersava no ar. Aquela fumaça que se disseminava tomando conta daquele ambiente. Dominando aquela sala. Como que dizendo – Olhe, olhe pra isso. Olhe pra essa obra-prima. Sim. Minha obra-prima –.

Nos encaramos por algum tempo. Não podia ver seus olhos. Mas sabia que ele me via. Era incrível. Ele não se mexia.

Sei hoje que ele queria ser pego. Jamais teria o encontrado se ele não quisesse. Apenas não me pergunte por que ele queria que eu o encontrasse.

Talvez tenha se cansado daquele jogo.

Talvez tivesse, desde o início, planejado uma grande cena, um grande cenário. Um espetacular ato final.

A grande conseqüência. Talvez aquele momento tenha sido a premissa para todas as causas.

Enfim, seja como for, assim como ele, eu não era capaz de mover um músculo. Por diferentes razoes é claro. Eu, surpreendido e extasiado com o momento. Ele, impassível, desfrutando.

Naquele jogo que ele havia montado, eu era a figura imponente.

Prendê-lo, agredi-lo, ou até mesmo matá-lo, eram coisas que estavam previstas dentro das regras que ele havia criado. As regras do caos. Da desordem ordenada. Ordenada por um homem. O grande controlador da selvageria. Ele havia implicado os fatores, o resultado, dentro dessa lógica caótica, seria, pra ele, sempre o esperado.

Da vitrola ao canto da sala, Sinatra cantava a plenos pulmões. Não escutei meus homens chegando.

Assim como eu, eles haviam entrado no inferno criado por um homem. Isso eu já esperava. Já o conhecia muito bem. O que eu não esperava, e acredito que meus homens também não, era que fossemos entrar em nosso próprio inferno particular. Vi naquele instante a natureza do homem, em seu estado mais podre.

Seriamos, por muito tempo, atormentados por aquele momento.

Quando finalmente os encaro, vejo seus rostos cobertos com panos. A reação que tomaram, de imediato, fora a mesma que a minha. À primeira inalada dentro daquela sala, o pútrido odor da decomposição dos corpos atingiu em cheio seus pulmões e suas almas.

De rostos cobertos eles me encaravam. Troquei olhares com cada um deles. Ninguém deu uma palavra durante a coisa toda. Apenas Sinatra conduzia aquele dialogo.

Finalmente olhamos todos para ele. Quando eu tomei meu primeiro passo em sua direção, com extrema calma ele se levantou. Saquei minha arma. Todos apontamos para ele. Nenhuma reação àquilo. Ele nos ignorou. Começou a dançar por entre os corpos. Iluminados à luz da lua. I did my way! Ele acompanhava enfim, o ritmo da música.

Fizemos a prisão. Ele não relutou.

Sua obra havia sido concluída.

Não me envolvi mais com o caso. Preenchi, naquela noite mesmo, toda a papelada e fiz todo o trabalho burocrático assim que voltei a delegacia. Não esperei sequer o dia seguinte para fazê-lo. Depois disso não quis dar continuidade ao processo e passei o caso para um delegado de outra divisão. Ele levou o mérito pela coisa toda.

Quando penso, hoje em dia, a respeito do assunto acho estranho que tenha agido dessa forma. Depois de anos no encalço daquele que ficou conhecido como o mais brutal assassino do país, aquele que nem o FBI conseguiu capturar, eu não quis dar continuidade com a coisa toda. Acho que eu precisava pega-lo mais por uma razão pessoal. Para provar pra mim mesmo que nós, nós como homens, como humanidade podíamos nos livrar dele. Que aquilo que ele representava era algo terrível mas que podia ser aniquilado.

Barão Van der Berg, o barão demônio, como o chamavam.

Se eu finalmente olhei nos olhos dele ? Ah, sim. Eram olhos de homem.


"Não é nosso propósito negar a nobreza humana, nem fizemos nada para diminuir seu valor. Ao contrário, mostrei-lhes não apenas o desejo do mal que é censurado mas também a censura que o suprime e o torna irreconhecível" - Freud