14 junho, 2011

Repulsa ao Sexo



Enquanto anda pelas ruas de Londres, Catherine Deneuve exala todo o charme e sensualidade da genuína inibição feminina em meio a olhares que despem sua inocência e descobrem, sob a mascara de menina, uma mulher reprimida. E cada passo pelas ruas dessa Londres é marcado pelo evidente ritmo da Nouvelle Vague.

O ano é 65 e a revolução sexual está em alta. São vinte anos do término da 2ª Guerra Mundial e a miséria social na Europa, afora alguns pormenores, já tomou fim. Quanto à miséria humana, em vista dos horrores praticados na guerra e a repulsa social que foi gerada como sintoma, deu lugar ao marketing de comportamento.

Nesse contexto, sexo é comportamento e matéria social, saindo da sordidez dos quartos de hotel e virando fofoca em salão de beleza. Em uma última instância, cinco anos antes, Godard com Acossado é isso, mulheres gritando sua revolução sexual, pra todo mundo ouvir. Elas agora tem cabelos curtos e estudam jornalismo. E uma onda, uma nova onda, varre a Europa com essa demonstração pública de liberdade sexual, em todos seus níveis de conseqüência, naquilo que podemos considerar ser um impulso coletivo de defesa ante os meios de opressão vividos durante a guerra.

Repulsa ao Sexo, em questão, é um ensaio de teor psicológico que supõe, no momento da causa, todas as conseqüências que a nova ideologia sexual pode engendrar, do minuto que uma ditadura comportamental invade a privacidade das pessoas.

Mas, nem por isso a obra de Polanski é um parecer crítico dos movimentos sociais em voga na Europa. É, sim, um retrato de um fenômeno muito mais real e genuíno do que as falsas pretensões de ser bem resolvido na cama, enquanto se tem um Renoir na parede do quarto, como leva a sério Godard.

O contexto desses movimentos sociais está presente no filme, mas apenas como palco para todos os horrores traumáticos de sua heroína.

E o que Polanski faz aí é um tratado a respeito de toda a sordidez e perturbação que aflige as pessoas na cama, não importa se elas são velhas e feias ou se são a Catherine Deneuve.

Enquanto a Jean Seberg de Godard desfila pelas ruas de Paris, de calças justas e filósofos de baixo do braço, a Catherine Deneuve de Roman Polanski desfila por Londres com longos cabelos sobre o rosto e cabeça baixa. O interessante é perceber o vívido contraste que Polanski propõe, entre personagem e ambiente, quando, logo na primeira parte do longa, filma uma menina assustada, como um cão acuado, em um ritmo próprio da Nouvelle Vague.

Logo nos primeiros minutos de filme, então, temos todo o brilhantismo do cineasta. Por referência estética, Polanski situa sua personagem nessa nova Europa, de liberdades intelectuais e sexuais, numa instância em que essa personagem não faz parte desse movimento novo, mas, sim, sente-se reprimida por ele.

A maneira abrupta como fica imposto que as pessoas tem de expor e detalhar publicamente todas as minúcias de sua vida particular é fato, por demais, assustador para a virgem santa Carole (Catherine Deneuve).

Carole é uma jovem que mora sob os cuidados da irmã mais velha Helen (Yvonne Furneaux) e trabalha, onde mais senão, num salão de beleza. E assim o filme se abre. Ela trata de uma velha senhora, já em 65 com manias de juventude, que faz as unhas e cuida da pele. Entre uma cutícula e outra, essa senhora faz comentários e dá conselhos sobre como tratar os homens.

Entre uma cutícula e outra, o olhar de Carole fica mais e mais distante, e ela parece desconexa do mundo real.

É evidente que todo aquele charme e toda aquela beleza física forçaram a personagem a experimentar, em todas suas relações com o sexo oposto, o sentido de ser apenas um objeto de desejo e abuso.

Durante todo o decorrer do filme, isso fica cada vez mais claro, de modo que com cada conversa que a personagem ouve a respeito de homens, ela vai ficando mais introspectiva e distante da realidade, revelando, assim, apenas com olhares vazios, toda uma história pregressa de abuso e, conseqüente, repressão sexual.

É ai que se encontra todo o elemento catártico da obra, que caminha a passos curtos e se arrasta até alcançar seu ápice, na segunda metade do filme.

Conversas sobre relacionamentos, a dependência do sexo como fator social, e olhares de homens pelas ruas, são elementos que vão jogando Carole num estado de introspecção gradativa até o momento em que ela perde o senso de realidade e, aí então, o filme caminha pra uma intenção do retrato subjetivo e particular de uma mente levada à insanidade por pressões externas.

Quando sua irmã parte em viajem com o amante, Carole se vê sozinha e vulnerável. Já estamos na segunda metade do filme e, agora, o apartamento da jovem, seu lugar de isolamento e horror, já se torna um personagem que a assombra em suas dimensões variáveis e incompreensíveis.

O lugar é escuro, mórbido e praça livre pra qualquer tarado que queira vir e abusar de Carole. Isso é o que imagina uma menina que, por claro indicio fotográfico, já foi abusada pelo pai, e experimenta uma vida urbana onde sexo é imposição.

O assombramento da protagonista, diante desse espaço incoerente, se torna logo o assombramento do espectador, que experimenta desse horror psicológico junto com a personagem.

Pouco a pouco, a repressão dessa menina vai se transformando em pulsões maníacas e gestos como coçar o nariz repetidas vezes antecipam o assassinato de supostos pervertidos.

Num jogo de luz e sombra, que corre durante toda essa parte do longa, com clara influência do cinema expressionista, essa personalidade perturbada de Carole passa a vivenciar um cotidiano esquizofrênico que, não podendo ser de outra maneira, comete atos aflitos e, por fim, acaba entrando em colapso.

Com tudo isso, Polanski remonta um terror psicológico que expõe a fragilidade mental das pessoas, quando o assunto em questão é sexo. À época em que se situa, Polanski não pode deixar de circundar, então, esse ambiente de amor livre e, talvez inevitavelmente, desautorizar todo o discurso de exploração social do sexo.

Mas se fosse apenas isso, Repulsa ao Sexo estaria jazido na década de 60, sendo apenas revisitado por um curioso ou outro. E é por ir além de uma discussão social e tratar das ontológicas obsessões e traumas do ser humano acerca da sexualidade é que Polanski constrói terreno para, até mesmo, Von Trier e seu Anticristo.

Um comentário:

Amanda S. disse...

Gostei do blog, e vc escreve bem! bj