24 maio, 2011

Freshdent


O importante é massagear as gengivas. Não de cima pra baixo, como muitos pensam. O segredo está em massagear as gengivas num sentido circular. Faça isso e você estará precavido de 95% dos problemas cotidianos. Essa é uma estimativa real.

Freshdent.


Ao terminar de ler o anúncio, o farol de um carro em alta velocidade lhe atinge os olhos e ele fica cego por um segundo, ou dois. Ao que tenta recobrar a visão, a multidão lhe esbarra, ombro a ombro. Olha pra cima e nota que o sinal pra pedestres está aberto. Ele recupera sua maleta da calçada e se junta aos desconhecidos. Foi um longo dia. 10 da noite e ainda não comeu nada. À mente, a lembrança fotográfica da geladeira, do flat em que vive. Uma maçã jogada no canto, uma caixa de leite de três dias atrás, um pedaço de bife da noite anterior e restos de pizza de sabe-se lá quando.

O bife – ele pensa– vou ficar com o bife.

Passo a passo. Cabeça baixa, olhos fixos nos sapatos. Alguns minutos ainda até chegar ao flat. Ele boceja. O gosto da fome lhe toma conta da boca.

Meu Deus – ele se espanta – talvez eu deva comprar aquela pasta de dente. É, bem, é isso que vou fazer, amanhã. Vou comprar uma caixa de Freshdent e passar a massagear minhas gengivas, isso deve servir pra alguma coisa.

A idéia de massagear as gengivas lhe dá um novo ânimo e o caminho para casa parece mais suave. Ele sabe, agora, que, amanhã, será um novo homem, diferente deste que caminha para casa, agora, sem jamais ter escovado as gengivas.

Pelo que resta do caminho, ele encara os olhos daqueles que vem na contramão.

Silhuetas de rostos, contornados pela meia luz de um poste atrás do outro. Na sua cabeça, rosto a rosto, peça a peça, se forma um mosaico urbano.

Olhos vazios e tristes, imersos em seus próprios pensamentos, perdidos nas obrigações futuras e nas cagadas passadas.

Ele se afasta de si mesmo, e observa seu próprio caminhar. O mesmo desamparo lhe é apresentado e ele vê olhos cansados, apenas pela razão de serem.

Ele tenta imaginar cada uma dessas pessoas em suas rotinas. Está certo que há 2, 3, 4 horas atrás elas eram só sorrisos simpáticos, acenos de cabeça obedientes e agentes de pequenas conversas sobre o tempo, política e meios de acabar com a fome no mundo. Assim como ele havia sido, há 2, 3, 4 horas atrás.

Dessas todas – ele imagina – algumas são quietas e apenas cumprem suas funções, esperançosas de cair rápido na cama, ao fim do dia. Outras conversam com todo o escritório, e arrumam compromisso para sexta à noite, quando ainda é segunda “Deus me livre ficar sozinho na sexta”. Outras, ainda, trabalham na Natura, porque tem ideais ecológicos e odeiam o sistema, mas, ainda assim, precisam pagar as contas, e a linha Natura-Eco concilia ideais com grana “Que bom que a Natura me entende”.

Ele continua a imaginar tudo isso, conforme caminha, mas não consegue deixar de perceber que, ao final do dia, é a falta de propósito e sentido que parece transformar, olhar por olhar, todas as pessoas numa grande massa indistinta, sufocada em sua própria solidão desesperadora.

Ele pensa a respeito da ilusão coletiva e acordada que corre durante as horas de trabalho.

Ele pensa no modo como todos simulam um propósito digno para se entregarem a longas jornadas destes trabalhos.

Mas ao que nota cada olhar, ele se dá conta do que já sabia há muito tempo. Ele se dá conta de que o único propósito para se fazerem miseráveis dessa tal maneira é o de ter garantido a certeza de poder massagear as gengivas com Freshdent.

Ou, talvez, não. Talvez ele não se de conta disso tudo. Talvez hoje tenha sido apenas mais uma caminhada de volta pra casa, ao fim de mais um cansativo expediente.

E talvez esse seja, apenas, eu. Delirando, com meu hálito amentolado.

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