29 janeiro, 2013

O Mestre




Como cineasta, aprendi, assistindo à bons filmes, que poucas coisas são capazes de expressar a condição humana tão bem quanto a performance de um ator. “O Mestre” é um filme que bem exemplifica isso. Aqui, intepretação e temática se desenvolvem lado a lado e se complementam.

A história de Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um andarilho, veterano da 2ª Guerra Mundial, que, por força do destino, acaba conhecendo Lancaster Dodd (Phillip Seymour Hoffman), o fundador de uma nova religião, trata, simplesmente, da relação entre esses dois homens. O que dá forças ao filme é a abordagem dessa relação, que prepara terreno para os mais diversos níveis de análise. Sob um certo prisma, essa é uma relação paternal conflituosa – como as são por natureza – onde um terno e preocupado Dodd adota Quell como seu filho. Um filho desviado do caminho do bem e desvirtuado por ocasião de um mundo hostil, a quem Dodd aspira colocar no caminho da redenção. Mas se por um momento a relação entre eles se apresenta dessa maneira, o que temos logo em seguida é um líder religioso impassível e meticuloso em seus métodos, para quem Freddie Quell não passa de um cão domesticável. Basta notar como o personagem de Phoenix é sempre mantido ao lado de fora das casas, recebendo tarefas de condicionamento e repreensões toda vez que está dentro delas.  Good boy – Dodd costuma dizer à Quell. Por outro lado, o filme não teria metade de sua força se apenas o mestre religioso agisse sobre o vagabundo. Não, à medida em que o filme avança aquele sóbrio Lancaster Dodd do começo vai aparecendo mais destemperado e por horas perde a razão. Ele se deixa abalar por Quell, cujas atitudes impensadas e continua teimosia em se deixar domesticar o desestabilizam emocionalmente – o que, num ultimo momento, se traduz em afeto –.

Enfim, a relação mestre e aprendiz é concebida com tal cuidado e inteligência por seu roteirista e diretor, Paul Thomas Anderson, que a cada momento ela parece sugerir algo diferente, onde ambos os homens se deixam afetar um pelo outro. Haveria uma infinidade de leituras a se fazer sobre essa relação, e é isso o que faz um bom filme – profundidade –. Devo abrir um parênteses para constatar a minha verdadeira alegria em assistir a uma obra como essa depois da mais recente bobagem tarantinesca.

Continuando, afim de garantir a qualidade do texto eu devo tentar me ater a uma única abordagem dessa relação. Vale dizer que cada modo de interpretação da relação parece sugerir algo sobre a própria existência humana, donde os personagens traduzem algo sobre o mundo que nos cerca e a posição em que nos encontramos nesse mundo. Eis a importância das soberbas atuações de Phoenix e Seymour Hoffman para validar a temática. E é justamente por esse motivo que tenho maior apreço pela análise da relação de Dodd e Quell como mestre e cão domesticável, respectivamente.

Quell é um velho cachorro louco, desamparado e sem rumo, cujos constantes impulsos sexuais refletem sua natureza primitiva. Dodd é seu mestre. Em um plano emblemático do filme, o quadro é dividido em duas metades. De um lado, Quell caminhando com dificuldade em um navio que navega sobre as águas de um dos canais de Nova York. Do outro, estas próprias aguas em movimento, como espelho da essência violenta e devastadora dos homens. O plano é ainda mais representativo quando consideramos que é nesse mesmo barco que Quell e Dodd se conhecem. Ou seja: o barco como símbolo do domínio racional do homem sobre as aguas. Traduzindo, o caminhar desequilibrado de Quell a bordo desse barco é uma primeira imagem desse homem que será induzido a domesticar-se. É curioso que Dodd seja o mestre de uma ceita religiosa, pois da maneira que vejo ele poderia ser uma figura política ou um cerebral cientista. O que quero dizer é que religião, politica e ciência, juntamente com a instituição familiar - bem representada na qualidade paternal de Dodd – tem sido os pilares das sociedades por algum tempo, já. Em essência, todos eles exercem um controle sobre nossos impulsos primitivos. Cada um a sua maneira.

Entendo a opção de Thomas Anderson, pela religião como cenário do filme, como algo que fortalece o argumento de que todo o movimento do personagem Dodd pelo decorrer da trama é um movimento vazio de qualquer sentido real e concreto. Suas investidas em Quell jamais vingarão porque não há verdade em nada do que ele diz e ele próprio está ciente disso. Quando Anderson contextualiza sua história no período do pós-guerra, onde a fé na ciência como motor do progresso humano acaba de vir abaixo, e onde a religião há muito tempo perdera sua característica de moderadora social, o que temos é um cenário de desesperança, onde as pessoas procuram se agarrar umas nas outras em busca de sentido. Nesse cenário, estão todos dispostos a comprar mentiras banais e vende-las como verdades absolutas. As pessoas precisam disso pra poder dar continuidade a suas vidas.

Por algum tempo eu associei a figura de Quell, o velho cachorro louco, com aquela do desesperado homem moderno em busca de algum sentido na vida. Um homem a procura de alguém que quisesse domesticá-lo, acreditando nas bobagens do primeiro mestre que lhe aparecesse. Mas havia algo de incomodo na interpretação de Phoenix. Seu sorriso debochado de canto de boca e suas ações contraditórias à tudo aquilo que Dodd lhe ensinava pareciam caçoar e fazer pouco das palavras pregadas pelo mestre, e fugiam à minha leitura dele como alguém desesperado. Foi quando me dei conta de que a figura desamparada e falida não é o cachorro mas, sim, seu mestre. Se essa é uma história sobre a humanidade de uma maneira geral, então o título deve fazer referência àquele que representa essa humanidade – O Mestre –. Finalmente entendi que aquele cachorro louco é a natureza presente no próprio mestre e que ele tenta tão desesperadamente controlar. Quell é a essência da existência de Dodd. E Dodd somos nós, que tentamos controlar nossos impulsos, por todos os meios necessários.

Nós somos o líder religioso que inventa as mais baratas mentiras e as vendemos na esperança de que se tornem verdades. Na esperança de enganarmos a nós próprios, nos fazendo acreditar que ao fim do dia somos algo mais do que constante tensão sem alívio. Pois se assim for só nos resta o desespero.

Em dada cena, ao final do filme, Dodd convida Quell a visita-lo em Londres. Chegando lá, Quell é recebido em uma grande e ostensiva sala, sugerindo que a religião fundada por Dodd vingara e as pessoas compraram suas mentiras. Eles se sentam à uma mesa, um de cada lado. Atrás de Dodd há uma grande janela que da para um céu branco. Os dois começam a conversar e os planos em que Dodd aparece remetem às pinturas renascentistas. Ele é uma figura divina, posta ao centro da tela, preenchendo-a com toda sua magnanimidade. Atrás dele, porém, a luz que entra da janela não incide sobre sua cabeça como aconteceria numa pintura renascentista. Não, ao contrario disso, a luz é opaca e difusa. Eis a perda da áurea. Em sua ostensiva sala, construída sob os auspícios de mentiras que ele quer tanto poder acreditar, Dodd não passa de uma divindade falida. A falta de uma luz incidindo sobre sua cabeça, torna evidente a farsa que ele construiu pra si próprio. Mas são suas palavras finais para Quell que causam o maior impacto – Se você conseguir viver sem um mestre, me conte como o fez –. E com isso, Quell se levanta e vai embora sem nos deixar qualquer esperança de jamais tornar a domestica-lo. 

Há verdadeira beleza na maneira como o filme todo é construído e grande parte dessa beleza nasce das interpretações de Joaquin Phoenix e Phillip Seymour Hoffman. Cada vez mais tenho por certo de que a essência do bom cinema gira em torno dos personagens em detrimento às situações, que no fim das contas são mero pano de fundo para aquilo que realmente importa. 

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