03 março, 2010

Avant Dr.Jekyll, avant!


My Way. Tudo que ouvia era aquela música.

A cada passo que dava ela ficava mais alta. Meu coração batia. Temente à incerteza do próximo passo.

Após algum tempo seguindo o som da música, finalmente me deparei com aquela grande porta.

Sabia que assim que a abrisse, de algum jeito, eu não seria mais a mesma pessoa. Jamais.

Cogitei, por alguns segundos sair daquele lugar. Pra falar a verdade, sair dali era só o que eu queria. Num gesto involuntário, um de meus pés chegou, ainda, a dar um passo de recuo.

Mas não podia abandonar a coisa toda ali. Não quando finalmente estava tão perto daquilo que vinha perseguindo há anos. Sabia o que tinha que ser feito. E ainda que com um grande embrulho no estomago, eu fiz.

Abri aquela porta. Uma porta imensa, do tamanho de três grandes homens. A dificuldade para abri-la, por causa do seu peso, de uma certa maneira me pareceu até apropriada. Após tantos anos de exaustão naquele caso, o ato final não poderia deixar por menos.

Dei, finalmente, meu primeiro passo dentro daquele ambiente. O odor que num primeiro instante percorreu meus pulmões fora o suficiente para nocautear o resto de meus sentidos e impedir uma instantânea percepção do resto do ambiente.

Finalmente abri meus olhos e numa rápida passada de olhar por aquela sala vi das mais terríveis atrocidades que um ser é capaz de cometer. Mas não foi isso o que me prendeu a atenção.

Seus feitos, afinal de contas, eu já conhecia de longa data. Por quantas vezes já havia entrado em cenas de seus crimes segundos após ele os ter cometido.

Nada daquilo me era surpreendente. A surpresa estava em finalmente ver seu rosto. Finalmente encontrá-lo pessoalmente.

Ainda que estivesse na expectativa de encará-lo. Ainda que quisesse olhar em seus olhos para poder dizer – Vejam não é o olhar de um homem, é o olhar do demônio –. Ainda que por anos essas fossem as únicas coisas que eu realmente desejasse, não foi seu rosto a coisa que primeiro me chamou atenção.

Por algum motivo, ao vê-lo sentado no meio da sala. Em meio a todo aquele cenário. A primeira coisa que me chamou a atenção foi sua mão.

Seu braço caído pra fora daquela cadeira era a única coisa que se discriminava àquela sua altitude altiva.

Pernas cruzadas, postura ereta, cabeça erguida. Tudo em perfeita harmonia com sua condição de noção de mundo. Seu ser superior. No entanto, naquele quadro que ele havia montado, a pintura de seu braço esquerdo caído para fora da cadeira foi o que me chamou a atenção. Percorri meu olhar do começo de seu ombro até a manga de seu paletó. E dali, detive meus olhos em sua mão. Ele segurava uma lâmina.

Dela, num ritmo lento, escorria um humor vermelho. Escorria como se tivesse a eternidade pra continuar escorrendo.

Foi a primeira coisa que vi.

Meu olhar contemplava aquela lâmina.

Eu nada mais fazia. Sabia por um relance de olhar, logo ao entrar, todo o resto de coisas terríveis que ali jaziam. Coisas que teriam sua devida atenção, em seu devido tempo.

Mas ali, naquele momento, tudo que via era aquela lâmina gotejante.

Ainda não havia sequer sacado minha arma, um ato de imprudência, devo dizer, ainda que ele não tivesse atentando contra mim.

E se tivesse atentado não sei dizer se teria reagido, tal era meu estado.

Minha prudência, como detetive, como policial, ou até mesmo como humano num ato de sobrevivência, sumira frente a visão daquela lâmina. Gotejante.

Ainda que a única luz existente fosse a da lua, que vinha através das enormes vidraças, sua imagem, sentada naquela cadeira, era nítida.

Finalmente sai de meu estado de transe e encarei seu rosto.

Cabelo penteado. Cara limpa.

A luz do luar que incidia sobre seu rosto, no entanto, não era suficiente para uma distinção mais clara de sua fisionomia.

Pude ver o cigarro que repousava no canto de sua boca. A fumaça que exalava, trazia consigo um riso que me faz tremer da cabeça aos pés até hoje.

Um calafrio me percorreu o corpo todo enquanto a fumaça do cigarro se dispersava no ar. Aquela fumaça que se disseminava tomando conta daquele ambiente. Dominando aquela sala. Como que dizendo – Olhe, olhe pra isso. Olhe pra essa obra-prima. Sim. Minha obra-prima –.

Nos encaramos por algum tempo. Não podia ver seus olhos. Mas sabia que ele me via. Era incrível. Ele não se mexia.

Sei hoje que ele queria ser pego. Jamais teria o encontrado se ele não quisesse. Apenas não me pergunte por que ele queria que eu o encontrasse.

Talvez tenha se cansado daquele jogo.

Talvez tivesse, desde o início, planejado uma grande cena, um grande cenário. Um espetacular ato final.

A grande conseqüência. Talvez aquele momento tenha sido a premissa para todas as causas.

Enfim, seja como for, assim como ele, eu não era capaz de mover um músculo. Por diferentes razoes é claro. Eu, surpreendido e extasiado com o momento. Ele, impassível, desfrutando.

Naquele jogo que ele havia montado, eu era a figura imponente.

Prendê-lo, agredi-lo, ou até mesmo matá-lo, eram coisas que estavam previstas dentro das regras que ele havia criado. As regras do caos. Da desordem ordenada. Ordenada por um homem. O grande controlador da selvageria. Ele havia implicado os fatores, o resultado, dentro dessa lógica caótica, seria, pra ele, sempre o esperado.

Da vitrola ao canto da sala, Sinatra cantava a plenos pulmões. Não escutei meus homens chegando.

Assim como eu, eles haviam entrado no inferno criado por um homem. Isso eu já esperava. Já o conhecia muito bem. O que eu não esperava, e acredito que meus homens também não, era que fossemos entrar em nosso próprio inferno particular. Vi naquele instante a natureza do homem, em seu estado mais podre.

Seriamos, por muito tempo, atormentados por aquele momento.

Quando finalmente os encaro, vejo seus rostos cobertos com panos. A reação que tomaram, de imediato, fora a mesma que a minha. À primeira inalada dentro daquela sala, o pútrido odor da decomposição dos corpos atingiu em cheio seus pulmões e suas almas.

De rostos cobertos eles me encaravam. Troquei olhares com cada um deles. Ninguém deu uma palavra durante a coisa toda. Apenas Sinatra conduzia aquele dialogo.

Finalmente olhamos todos para ele. Quando eu tomei meu primeiro passo em sua direção, com extrema calma ele se levantou. Saquei minha arma. Todos apontamos para ele. Nenhuma reação àquilo. Ele nos ignorou. Começou a dançar por entre os corpos. Iluminados à luz da lua. I did my way! Ele acompanhava enfim, o ritmo da música.

Fizemos a prisão. Ele não relutou.

Sua obra havia sido concluída.

Não me envolvi mais com o caso. Preenchi, naquela noite mesmo, toda a papelada e fiz todo o trabalho burocrático assim que voltei a delegacia. Não esperei sequer o dia seguinte para fazê-lo. Depois disso não quis dar continuidade ao processo e passei o caso para um delegado de outra divisão. Ele levou o mérito pela coisa toda.

Quando penso, hoje em dia, a respeito do assunto acho estranho que tenha agido dessa forma. Depois de anos no encalço daquele que ficou conhecido como o mais brutal assassino do país, aquele que nem o FBI conseguiu capturar, eu não quis dar continuidade com a coisa toda. Acho que eu precisava pega-lo mais por uma razão pessoal. Para provar pra mim mesmo que nós, nós como homens, como humanidade podíamos nos livrar dele. Que aquilo que ele representava era algo terrível mas que podia ser aniquilado.

Barão Van der Berg, o barão demônio, como o chamavam.

Se eu finalmente olhei nos olhos dele ? Ah, sim. Eram olhos de homem.


"Não é nosso propósito negar a nobreza humana, nem fizemos nada para diminuir seu valor. Ao contrário, mostrei-lhes não apenas o desejo do mal que é censurado mas também a censura que o suprime e o torna irreconhecível" - Freud

9 comentários:

Wander Veroni Maia disse...

Oi Mateus!

Excelente texto e parabéns pela construção da história. Ficou muito bacana!

Abraço

Furdunço disse...

mto massa e assim a parte final realça mensagem do texto,mto bacana mesmo^^

Anônimo disse...

CADA DIA QUE PASSA SEU BLOG FICA MAIS ENCORPADO E INTELECTUAL! ISSO É BOM DEMAIS PARA NÓS LEITORES!

Anônimo disse...

Retribuindo a visita.Reconheço uma certa semelhança no estilo de nossas escritas Mateus.É uma trama que provavelmente eu poderia ter escrito,inclusive tenho algumas com esse clima tenso,claustrofóbico e com simbologias.Achei muito bom mesmo,ótimo(mas sou suspeito,já que é o estilo que curto).O mal está lá,enraizado nas nossas entranhas,prontinho para emergir de um momento para o outro,seja quando invejamos aquele nosso amigo ou sentimos vontade de falar mal de quem não merece.Faz parte da nossa natureza.Voltarei para ler outros.Abrç e estou seguindo.
Fábio Zen
http://oficinamissoes.blogspot.com/
Ah,tenho outro blog sobre minhas impressões sobre o mundo pop.O link
http://pimentazen.blogspot.com/

Luiz Scalercio disse...

nossa bellissimo texto
gostei muito
prbns.

henrique disse...

Fechou o assunto com uma excelente citação: Sr. Freud!

Vanessa Luiza disse...

Adimiradíssima com o texto!
Sem dúvidas a melhor blog que li hoje.
Parabéns.

Renan Ogawa disse...

Retribuindo a visita.
O mal é algo complexo, e acho que só o entendemos em sua real forma devido as experiências de nossas vidas, como foi o caso do Policial da sua história.
No meu texto, eu disse que pode ser que as pessoas más sejam apenas pessoas que mascaram suas indefesas, mas não quero dizer que TODO MUNDO que é mal é frágil.
Deve-se lembrar que as pessoas são regidas pelos mais diversos sentimentos, que podem ser fortes ou não.
É preciso se em encontrar no meio dessas confusão!
Em alguns momentos lendo seu texto vi semelhanças com a forma de escrever da JK Rowling. Parabéns!
O Blog Renance agora tem um espaço para críticas, dúvidas, ou recados.
Visite e descubra como vc pode ajudar a melhorar o blog!
Sobre a parceria, se puder me adiocine no msn ( r.ogawa@hotmail.com ) para falarmos sobre isso.

Caroline Rodrigues, disse...

eu realmente adorei "