27 fevereiro, 2010

You must believe in spring.

Ando pela rua numa noite como outra qualquer. Uma noite de neve. A cada passo que dou, como que em uma provocação, a neve teima em cair mais forte. Ja não sinto mais minhas mãos, e meu rosto, enrolado até a altura da boca por um cachecol, é cortado pelo vento frio que se joga contra mim.

Posso andar mais depressa e em pouco tempo estarei em casa. Mas não quero. Não hoje.

Me jogo pra dentro do primeiro bar que vejo. Uma conversa num canto aqui e outra ali, logo no outro canto. O lugar não está cheio, mas também não está vazio. Procuro uma mesa em algum lugar mais isolado. A caminho da mesa as luzes do lugar diminuem.

As conversas silenciam.

Um foco de luz nasce e ilumina aqueles dois companheiros. Amigos de longa data. Ela, que agora se esconde atras do microfone, eu poderia dizer com uma quase certeza, já fora muito bonita um dia. Já fizera muito sucesso em palcos como este, cantando pra uma platéia quase como esta. Um pouco mais animada apenas. Ele, sempre a mão amiga, seu eterno companheiro, se senta frente ao piano. Seu rosto carrega marcas e seu fígado, deduzo pelo whisky em cima do piano, também já não é mais o mesmo.

Esse momento de consideração me toma uns cinco segundos. Tempo precioso e que não se pode ser perdido dentro de um bar. Não enquanto se pode estar bebendo.

Continuo meu caminho, tentando me achar no escuro. Então eu ouço. Como uma provocação.

Aquela música começa.

Logo de início, logo no primeiro dedilhar do piano, eu reconheço.

Ela ri de mim. Aquela música me encontra após tantos anos. Me olha, se lembra de quem eu já fui. Se lembra dos dias que eu já fui. E então, num tom que não reconheço, me conta isso tudo. Me conta minha própria história. Não sei se ela brinca comigo, se me quer bem ou se me quer mal. Não reconheço suas intenções.

You must believe in spring. Ela me diz. You must believe in spring. Ela me canta.

Fico suspenso.

Por que ali ? Por que daquele jeito ?

Eram perguntas que podiam ter me ocorrido. Mas não.

Nada mais importava. Pelo menos não àquela altura da vida.

Quem sabe, alguns anos antes, tivesse eu sido acometido pelo mesmo momento, com uma ingenuidade jovial teria me perguntado essas coisas.

Mas já pouco me importo.

Não é o destino. Não é uma pegadinha, nada do tipo. É só o acaso.

Um cara qualquer entra por uma das milhões de portas de bar do mundo e escuta uma música. Só aconteceu de eu ser o cara, entrando naquele bar pra ouvir aquela música.

O pianista.

Olho pra ele. Seus grandes dedos negros correm com suavidade aquele instrumento que ele conhece tão bem, que lhe é tão familiar. São amigos de longa data. Sua voz rouca acompanha a macia e maternal, leve e sensual, voz daquela que se camufla sob o facho de luz.

É incrível, nada mais existe, nada.

Somos nós. Sou eu, o pianista, a cantora, e ela. Nada mais importa, não quando se tem a eles.

You must believe in spring. A porta do bar abre. Uma rajada de vento entra. É um casal. Eles acham uma mesa e se sentam. Não posso evitar em sentir o frio que trouxeram. You must believe in spring, aquele bar me canta.

Um cara anda pela rua, a neve cai com maior intensidade. Ele procura um bar, um restaurante, um abrigo. Ele acha, caminha até uma mesa, pede um conhaque e se aquece.

A música continua tocando, mas e dai ?

Eu sou só um cara que entrou num bar em algum momento da vida. É assim que as coisas são.

Então, sem mais demora eu caminho até uma mesa, peço um conhaque e me aqueço. Já não ouço mais nada.

4 comentários:

Macaco Pipi disse...

QUE AR ESTRANHO NISSO
ATÉ A FOTO ALI
SINISTRA

Anônimo disse...

Hum mais um textos daqueles que marcam época e marcam recordações, parabéns por este blog cheio de qualidades!

Luis Sapir disse...

os detalhes enriquecem a sua escrita parabens!

Anônimo disse...

tá de parabéns.. curti MUITO.